Guerra | e | Paz
Mais do que apontar culpados ou enfiar-se em trincheiras historiográficas, importa definir o que fazer, retirando, no processo, pistas para o futuro. Para isso, também há que olhar para o passado.
Edição #15
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Por esta altura, já estará o querido leitor ou a querida leitora com altos níveis de saturação à palavra Afeganistão; com toda a profusão, repetição e contra-informação, o nome do país já terá perdido significado ou, entretanto, adquirido outro. O lado positivo de “chegar tarde” ao debate é que é-me possível ler mais e incluir diferentes perspectivas, recolhidas ao longo da semana. Por isso, talvez valha a pena ler até ao fim.
Vi no Facebook um bom post (sim, também os há) sobre que reacção/acção ter (e o que não fazer) em relação à saída dos Estados Unidos do Afeganistão e ao consequente domínio de Cabul - e restante território - por parte dos Talibã.
A publicação era, na verdade, um repost de outra rede, neste caso, do Twitter (Ah! Por isso é que era bom! - estou a brincar, o Twitter é um antro de toxicidade - ok: talvez sejam as pessoas as responsáveis e não as plataformas - esta conversa fica para depois)… Voltemos ao essencial: começa assim a thread…
A lista é até extensa. Os conselhos fazem muito sentido e da enumerção destaco duas coisas:
Acção no seu país (sim, aí onde se encontra a ler isto)
6) Has your country agreed to resettle Afghan refugees? Help support resettlement efforts, not just with monetary donations but through community support.
9) Does your country sell weapons, military equipment, and surveillance tech to depots, human rights violators, oppressive regimes, and/dictators? It's likely your tax payer dollars are helping support these activities.
Lugar de fala
1) If you are not an expert on #Afghanistan, have not been keeping up with what has been occurring, and are not directly impacted by what is happening don't share your unsolicited opinions and takes.
2) Instead follow and amplify the voices, work, and initiatives of Afghan activists, leaders, journalists, artists, and researchers.
Esta edição de Latitude Ocasional é muito sobre o ponto acma: amplificar as vozes de quem conhece bem as coisas. Isto não significa necessariamente que não haja bons trabalhos e/ou opinião oriunda de latitudes afastadas de Cabul (estou a pensar sobretudo nos EUA e na Europa, Portugal incluído). Desta forma, apresentarei algumas versões e leituras ocidentais e, depois, as vozes afegãs ou estreitamente ligadas ao país e ao tema.
(Brevíssima) Historiografia do Afeganistão
À semelhança de tantos outros assuntos, entender o que se passa no Afeganistão exige tempo para conhecer a história e ler a historiografia. É importante perceber que esta varia consoante interpretações e que os meios são, tal como as pessoas, politizados e parciais - é que, apesar de se defender tanto, a objectividade é um mito - até (sobretudo?) nos jornais.
Neste momento, qualquer tema passível do mais pequeno dilema torna-se altamente polarizado. Joga-se muito no Esquerda vs. Direita, no Nós vs. Eles… Por isso, achei interessante visitar o passado através de textos publicados durante esta semana.
Mais do que definir ou assegurar quem teve culpas na decisão de invadir o Afeganistão, tem-se procurado estabelecer uma narrativa de como era/estava o país e que opções haveria na altura. Cada lado conta uma história. O papel da URSS no Afeganistão tem sido ponto de partida para alguns.
A propósito, escreve Daniel Oliveira:
Depois de um primeiro impulso na implantação da República, um sangrento golpe comunista levou o Partido Democrático Popular do Afeganistão ao poder. O PDPA promoveu a permissão para não usar véu, a abolição de casamentos forçados e dote, a integração no mercado de trabalho como nunca, a alfabetização, a entrada nas universidades e na vida política. Como na Pérsia ou na Turquia, com o apoio do Ocidente, a secularização forçada não deixou de usar toda a repressão disponível, chegando ao ponto de obrigar os homens a cortar a barba e de proibir as mulheres de usar chador. Com ganhos para as mulheres, mas contra a vontade popular.
O título do texto de onde retirei o excerto acima pergunta: A ocupação soviética era boa porque defendia os direitos das mulheres? Terá sido formulada como contribuição para o debate que acima citei, e, arrisco dizer, endereçada a certos artigos, como o do Manifesto 74:
O Afeganistão progressista que alguns tentam esquecer
Em 1978, os comunistas do PDPA protagonizaram uma revolução junto ao povo afegão que derrubou o governo de Mohammed Daoud Khan e começaram a desenvolver políticas para tornar a distribuição da riqueza mais equitativa. Entre os seus objectivos estavam a emancipação da mulher, subjugada até então à servidão tribal, a igualdade de direitos para as nacionalidades minoritárias, incluindo o grupo mais oprimido do país, os Hazara, e a democratização do acesso à educação, saúde e habitação.
Vale a pena ler todo o artigo; e também este, cujo excerto abaixo copio:
Tem sido curioso ver, do editorial do Público aos grandes analistas de redes sociais, a ginástica com que têm sido lidos os "eu bem avisei" da esquerda anti-imperialista diante da humilhante retirada dos EUA e da NATO após 20 anos de ocupação do Afeganistão. Após 2 biliões de dólares "gastos", mais de 250 mil mortos (civis, militares, afegãos e não só), 2.5 milhões de refugiados, parece que afinal a culpa é da esquerda.
Anand Gopal, autor de No Good Men Among the Living: America, the Taliban, and the War through Afghan Eyes, diz o seguinte:
E, agora, esta achega de Steve Coll, escritor norte-americano e autor de Ghost Wars e Directorate S:
The Afghans now have suffered generation after generation of not just continuous warfare but humanitarian crises, one after the other, and Americans have to remember that this wasn’t a civil war that the Afghans started among themselves that the rest of the world got sucked into.
This situation was triggered by an outside invasion, initially by the Soviet Union, during the Cold War, and since then the country has been a battleground for regional and global powers seeking their own security by trying to militarily intervene in Afghanistan, whether it be the United States after 2001, the C.I.A. in the nineteen-eighties, Pakistan through its support first for the mujahideen and later the Taliban, or Iran and its clients. To blame Afghans for not getting their act together in light of that history is just wrong.
Termino com o texto que iniciou a secção:
A minha dúvida de então manteve-se até hoje, sempre com resposta final negativa: há impérios benignos? Não, não há. Não eram os direitos das mulheres que mobilizavam Moscovo, era o seu próprio poder na região. Não era a liberdade do Afeganistão que mobilizava o apoio norte-americano aos mujahideen, que ia de armamento, financiamento, recolha de fundos […] ou propaganda em filmes de Hollywood, era o seu próprio poder.
Onde Oliveira apresenta dúvida, arrisco uma certeza: todos os movimentos imperialistas são violadores de direitos, liberdades e garantias das pessoas que vivem nos territórios visados/ocupados; por isso, e sobre imperialismos, não entro na discussão de se os de Esquerda foram ou são melhores do que os de Direita, como tende a acontecer com os regimes totalitários. É tudo iliberal. É tudo para cancelar.
Outras ligações de interesse:
Uma breve história do Afeganistão, pela New Internationalist;
Guerra do Afeganistão, pela Britannica;
Britain's Disastrous Retreat from Kabul: 1842 Afghanistan Massacre;
Cronologia de eventos no Afeganistão, pela FFMS;
Afghan Index.
A posição dos invasores
É curioso verificar como este tema une as vozes críticas tanto da Esquerda como da Direita norte-americanas, mesmo quando durante 20 anos quase todos se mostraram em defesa da ocupação. Mas a união é só na decisão; depois, como em tudo, discordam ora no como, ora nas causas e consequências - isso nota-se na enxurrada de artigos publicados ao longo da semana. Em linhas gerais, e as nuances podem variar dependendo de quem escreve, temos:
a Esquerda atacou a falta de reconhecimento de uma invasão falhada, desastrada e devastadora para população, depois de 20 anos, deixada à discrição do governo Talibã, enquanto enaltecia o progresso alcançado no país.
a Direita preocupou-se com a perda de hegemonia mundial a.k.a. (in)capacidade para ser o “polícia do mundo” e na ameaça que os Talibã representam para a segurança, sobretudo, doméstica, culpando os governos afegãos pelo meio.
Numa rápida revista de imprensa, os maiores jornais da Esquerda norte-americana - WP e NYT - discordam de Biden: reconhecem que o projecto era reconstruir uma nação e que isso falhou:
From hubris to humiliation: America’s warrior class contends with the abject failure of its Afghanistan project
By 2009, when Obama took office, it was clear to just about everyone that the United States was losing the war.
To reverse Taliban momentum and give U.S. officials a chance to build up the Afghan government and security forces, Obama signed off on a surge of troops that more than doubled the size of the American force in Afghanistan.
Reconhecem, também, o modus operandi:
The United States has been in a similar position before: When it withdrew from Vietnam in 1975, the military evacuated 130,000 Vietnamese people alongside U.S. personnel. It was likewise a hectic operation that left hundreds of thousands of Vietnamese people, including U.S. affiliates, for dead.
Mas será que os erros do passado significam alguma coisa? Na revista New Yorker, uma possível resposta:
I think that the one additional reason it didn’t work was the sheer scale of the ambition. And this was visible in Iraq as well. Building a standing army of three hundred thousand in a country that has been shattered by more than forty consecutive years of war and whose economy is almost entirely dependent on external aid—that just doesn’t work.
Get Afghan Refugees Out. Then Let Them In.
Arash Azizzada, an Afghan American community organizer and a co-founder of Afghans for a Better Tomorrow, pointed out to her that the United States “has spent 20 years encouraging young people and women’s rights activists ‘to take the lead, to break barriers, to take part in civil society in Afghanistan,’” and they are now in danger because of it.
Acolher os refugiados e desamparados afegãos é mais do que um acto humanitário, é uma obrigação moral depois de EUA e NATO terem deixado o país escancarado. E o timing para o fazer importa (e decepciona):
UK to take 20,000 Afghan refugees over five years under resettlement plan;
Canada will resettle 20,000 vulnerable Afghans threatened by the Taliban and forced to flee Afghanistan;
Australia: ‘Moral obligation’: Almost 10,000 sign open letter pleading with PM to act on Afghanistan;
Portugal disponível para receber 50 cidadãos afegãos.
À Direita, e pelo painel editorial do Financial Times (Nota: com “We Believe in Capitalism” escarrapachado na homepage, foi doloroso entrar neste site; que não se repita), lê-se o seguinte:
President Joe Biden’s withdrawal announcement presented an uncomfortable fait accompli to other members of the international coalition — many of which saw their presence as a sustainable bulwark against the risks of terrorism and migration from Afghanistan. It also delivered worrying lessons about the new US leader. The Afghan pullout, and the White House’s reasoning, have demonstrated a continuity in foreign policy from the previous administration.
This is a tragedy for the people of the country, and a betrayal of the thousands of US and allied troops — and more than 120,000 Afghan citizens — who died in 20 years of war. It is a grave setback, too, for the credibility of the US and of the community of democracies Biden hoped to cement.
Na The Economist, temos:
As a result, America’s power to deter its enemies and reassure its friends has diminished. Its intelligence was flawed, its planning rigid, its leaders capricious and its concern for allies minimal. […] It will also encourage adventurism on the part of hostile governments such as Russia’s or China’s, and worry America’s friends.
Para fechar este capítulo, cito parte da edição de Popular Information The media's systemic failure on Afghanistan:
The one-sided coverage of the military withdrawal from Afghanistan mirrors the mistakes made in the run-up to the Iraq War. Then, "Bush administration officials were the most frequently quoted sources, the voices of anti-war groups and opposition Democrats were barely audible, and the overall thrust of coverage favored a pro-war perspective." Nearly two decades later, history is repeating itself.
Vozes no, do e pelo Afeganistão
Passando a vozes afegãs (ou muito próximas), mas ainda em meios ocidentais, cito um artigo que julgo focar-se no essencial: os grupos minoritários que, tal como em muitos outros assuntos e latitudes, acabam por sofrer mais. Escreve Malala:
Afghan girls and young women are once again where I have been — in despair over the thought that they might never be allowed to see a classroom or hold a book again. Some members of the Taliban say they will not deny women and girls education or the right to work. But given the Taliban’s history of violently suppressing women’s rights, Afghan women’s fears are real. Already, we are hearing reports of female students being turned away from their universities, female workers from their offices.
Os depoimentos de emigrantes afegãos também devem ser lidos, pois o contraste é tão notório como ficção para uns, realidade para outros.
“This is kind of a movie or a drama for the United States,” Mr. Sahil said. “When you watch a movie, maybe you are scared but then you walk out of the movie theater.”
“But this is real for us,” Mr. Sahil said, referring to the trauma of knowing that his relatives are still in Afghanistan. “We haven’t slept, we haven’t eaten. I can’t work.”
O Guardian publicou um relato na primeira pessoa de uma jovem afegã. Entre várias coisas importantes, destaca-se:
Meanwhile, the men standing around were making fun of girls and women, laughing at our terror. “Go and put on your chadari [burqa],” one called out. “It is your last days of being out on the streets,” said another. “I will marry four of you in one day,” said a third. […]
As a woman, I feel like I am the victim of this political war that men started. I felt like I can no longer laugh out loud, I can no longer listen to my favourite songs, I can no longer meet my friends in our favourite cafe, I can no longer wear my favourite yellow dress or pink lipstick. And I can no longer go to my job or finish the university degree that I worked for years to achieve.
Uma das questões mais recorrentes no debate é se os Talibã governarão de forma tão cruel e atentatória para com os direitos humanos como no passado. As reações variam, entre a expectativa e a descrença. Seria incrível se um grupo terrorista tivesse aderido à cultura woke e cancelado as práticas ditaturiais. Entretanto já temos a resposta: não aconteceu e há vários relatos disso.
“Os talibãs começaram a ir de casa em casa à procura das mulheres ativistas”, afirma a conhecida jornalista e defensora dos direitos da mulher Humira Saqib, que com seus 41 anos lembra nitidamente das sevícias cometidas pelos extremistas contra as afegãs durante sua ditadura (1996-2001). Sua denúncia contrasta com as mensagens de tranquilidade emitidas pelos porta-vozes talibãs. Ela não acredita. Como muitas outras mulheres, optou por se esconder. “As ativistas estamos escondidas aqui, nos escondemos em casas de amigos e familiares e não podemos sair [na rua] pelo risco que corremos”, resume Saqib em uma rápida troca de mensagens.
O excerto acima é deste artigo do El País Brasil; o abaixo é da newsletter Tangle.
Tolo News, the largest private news channel in the country, said Taliban fighters had been “polite” and came to their compound to register any weapons there, while also making a pledge to protect it.
But many Afghan women and civil rights leaders are skeptical this rule will look any different than the one in the late 1990s. Reports are already emerging from cities the Taliban has recaptured of women being murdered solely for their choice of clothing.
Vale a pena ainda
- Ler:
The Taliban’s Return Is Catastrophic for Women - As a photojournalist covering Afghanistan for two decades, I’ve seen how hard the country’s women have fought for their freedom, and how much they have gained. Now they stand to lose everything.
- Seguir:
No Twitter, a TOLO News ou a conta do seu editor-chefe:
Também no Twitter, e sobre a retirada norte-americana:
Como ajudar pessoas que estão no Afeganistão
Create safe passages from Afghanistan;
Talent Airlift Afghanistan;
Donate to Protect Children in Afghanistan;
Vital Voices: Protect Women and Children on Afghanistan;
Flyway: Emergency Afghan Rescue Mission.
Para fechar
(Também me apareceu no Facebook) O meu colonialismo é melhor que o teu:
So the American form of narcissism is to say: “we are not colonialists” like the others. Apart from the obvious colonialism of conquering the indigenous west of the country, apart from the “imperial binge” of the 1890s, the US practices and imperialism of military bases, it can invade country after country and always say: “We do not want one inch of Korean land, Vietnamese land, Laotian land, Cambodian land, Grenadian land, Iraqi land, Afghan land, etc..” But it keeps invading and maintaining bases. So that is the US exceptionalist narcissism. And then you have the French “mission civilisatrice” narcissism – “we only care about culture and education” – the British “it’s just about free trade” narcissism, and then the Luso-Tropicalist Portuguese “we are all mixed and love mulatas” narcissism, so every country has its exceptionalism
- Robert Stam.