Edição #17
Latitude Ocasional é uma newsletter escrita ao longo da semana, enviada gratuitamente. Se tiver oportunidade, ajude a comunidade ocasional a crescer, partilhando-a através do botão abaixo.
Não se trata, exactamente, de uma história desta semana, e muito menos de latitude definida; pelo contrário, a história principal desta edição só se pode contar juntando várias coordenadas, tecendo uma malha, abrindo a internet.
Este sábado, a Latitude Ocasional não muda assim tanto - uma vez que está sempre a mudar. O tema é um, que depois é outro e, no final de contas, mais uma introdução a dizer que vou fazer diferente quando deveria era ir direto ao assunto: Pornografia.
O acontecimento que me trouxe ao conteúdo original da internet (li algures e gostei, no sentido de pecado original) foi uma decisão e imediata reversão por parte da empresa que detém o site OnlyFans.
OnlyFans
Mas antes de contar a história, vale a pena perceber o que é esta plataforma. Para quem não conhece - deduzo que toda a minha mailing list ;) -, OnlyFans não se esgota na pornografia, pode ser apenas softcore, ou, no fundo, aquilo que as pessoas estiverem dispostas a fazer: trata-se de uma espécie de Instagram que prospera com conteúdos (ainda) mais explícitos (mas não só) e cujo acesso é feito mediante subscrição paga. Como li algures, faz parte da gig economy - uma uberização da publicação de fotos sem roupa.
Abaixo cito o artigo How OnlyFans Changed Sex Work Forever, cuja leitura integral recomendo:
He may pay her to help him achieve an orgasm, though she is not a prostitute. He may purchase erotic videos from her, though she is not a porn star. The pitch was to offer horny guys the ability to become their own directors, ordering specially made videos from their favorite models.
Por isso, é frequente ver no link na bio de algumas influencers de pouca roupa (sobretudo internacionais) um endereço para o OnlyFans, pois gerar tráfego orgânico nas redes sociais para capitalizar na plataforma paga é das estratégias mais comuns.
Em Portugal, pouca imprensa tem pegado neste tema. Mas justiça seja feita ao excelente trabalho de José Miguel Gaspar, no Jornal de Notícias:
O Only Fans fica com 20%, os restantes 80% são o lucro de Raquel. Além da taxa mensal, os fãs também pagam pontualmente por produtos específicos, que, por exemplo, num vídeo encomendado com fetiche pode começar em 100 dólares e só parar no tamanho do desejo ou da carteira de cada um – dependerá de cada tipo de parafilia, que é o substantivo que mede as excitações sexuais mais estrambólicas.
Ora o que aconteceu no final de agosto foi o seguinte: o OnlyFans declarou que iria, como estratégia, afastar-se do negócio dos conteúdos pornográficos/explícitos, e dedicar-se àquilo que é conhecido na internet como Safe For Work - conteúdos que podem ser vistos no PC do escritório. A razão está abaixo:
Discover, Mastercard and Visa suspended payments to Pornhub. Mastercard later announced new rules for banks that process payments to sellers of adult content: Starting in October, sites will have to verify the age and identity of anyone who is depicted in or uploads adult content, institute a pre-publication content review system, and offer speedy complaint resolutions and appeals.
These rule changes appear to have played a key role in OnlyFans’s recent ban. In a statement, the company said the move was made “to comply with the requests of our banking partners and payout providers.”
Depois desta decisão - que é o equivalente à Telepizza dizer que iria deixar de vender pizzas - milhares de pessoas que contam com o rendimento no site (não existe app por causa das margens de lucro) protestaram…
…e conseguiram que posição fosse revertida. Fim.
E tudo está bem quando acaba bem, certo?
Errado. Por várias razões.
A primeira é que mostra como uma decisão de entidades bancárias afecta, isola e sequestra modelos de negócio. Basta acharem desadequado, errado ou imoral e uma deliberação espoleta outra, colocando milhares de pessoas com o salário em risco. E os trabalhadores são sempre os principais prejudicados.
A segunda é a mais longa: de como surgiu a decisão da Visa e Mastercard cancelarem pagamentos relacionados com pornografia. Aqui chegados, é importante falar em Nicholas Kristof. O colunista do NYT escreveu em dezembro um longo texto a bater no Pornhub (alguém sabe o que é?), por não verificar os conteúdos ali carregados - muitos deles apresentando cenas de abuso e crime.
Cruzadas
Toda a razão seria dada ao Sr. Kristof não tivesse ele cedido ao irresistível ímpeto populista e demagógico que tanta força lhe deu escrever 3.800 palavras. Comportamentos tóxico, maus-tratos e coercividade na indústria pornográfica, infelizmente, ainda estão por erradicar - etodas as denúncias são bem-vindas.
Porém, acontece que o Sr. Kris quis passar ideologia anti-pornografia mascarada de preocupação com abusos, fazendo, pelo meio, PR para a organização Exodus Cry. O artigo, que foi viral, está na base da decisão das principais entidades bancárias em pagamentos electrónicos, que posteriormente afectaram o OnlyFans; e tal foi a propagação da coluna que surgiu (e bem), em contraponto, o artigo Nick Kristof and the Holy War on Pornhub:
Kristof, meanwhile, became the mainstream writer most responsible for establishing the terms of the sex trafficking debate for liberals and conservatives alike. Now he has pivoted from websites like Backpage, which sex workers once relied on for advertising and which was later shuttered by federal law enforcement, to websites like Pornhub. Poised to get the Kristof bump this time is a campaign run by a religious right organization, Exodus Cry, founded by a member of a Christian dominionist ministry, which has advanced anti-gay, anti-abortion, and antisemitic views.
Kristoff não menciona o nome Exodus Cry no seu artigo, mas aponta outro: a organização Traffickinghub, cuja diretora é Laila Mickelwait.
Sobre esta personalidade, vale a pena ler:
E ainda:
Mickelwait’s current job title is director of abolition at Exodus Cry, “a faith-based organization modeled on the character of Jesus, as the group describes itself, which “fights sexual exploitation and the sex industry” and is the home of the Traffickinghub campaign. Exodus Cry uses “abolition” in the sense used by anti–sex work groups, meaning the abolition of the sex trade, including prostitution and porn, by means of the criminal law.
Naturalmente, deve ser uma preocupação e alvo de regulação todos os sítios que prosperem recorrendo a práticas abusivas; se o Pornhub, tal comos outros sites, o é, então que se denuncie. Convém, no entanto, que o alvo não resulte de cruzadas pessoais, mas arbitrárias e estruturais, com honestidade na vontade de mudar:
Here’s Emma Hardy of the Internet Watch Foundation, a group that works to remove child sex abuse imagery from the internet:"Everyday sites that you and I might use as social networks or other communications tools, they pose more of an issue of child sexual abuse material than Pornhub does”
Para passarmos ao tema da pornografia, importa ler este excerto, retirado da newsletter I Might Be Wrong:
So, to be clear: There is an anti-porn, anti-sex work contingent in this country trying to harass sex workers out of business by pressuring banks and credit card companies to cut them off. They’re aided by journalists who collapse the complex issues surrounding sex work into simplistic, moralizing narratives.
Pornografia
É curioso como, de quando a quando, no combate político, se forjam expressões específicas para servirem de arma de arremesso unilateral. Dois casos paradigmáticos, lançados da Direita para a Esquerda, são “ideologia de género” e “marxismo cultural.”
Ao ler sobre pornografia, educação sexual e direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras do sexo, não pude deixar de pensar em alguma expressão para usar, mas em sentido contrário. Ficamos pelo velho e bafiento reaccionarismo.
Neste momento, nem sequer há debate público sobre os primeiros temas. Sendo certo que mais facilmente se possa falar sobre educação sexual do que sobre aquilo que toda a gente vê, basta recordar as polémicas (?) com as aulas de cidadania para se perder logo a vontade.
Comecei assim o tema da pornografia porque é importante perceber que tem de se encarar o facto de que faz parte da realidade, que, mais ou menos, toda a gente (ok, biliões de pessoas) vê, e que, dessas pessoas, muitos são menores, sem sequer terem dado uns beijinhos.
Desta forma, e tendo sempre presente como o que vemos nos filmes molda a nossa experiência da realidade, também a pornografia o faz - eventualmente com consequências mais nocivas. Daí, parece lógico que a melhor forma de o evitar é falando sobre isso.
Contudo…
There is little research on what children are watching and whether it affects their behavior. “But you don’t have to believe that porn leads to sexual assault or that it’s creating a generation of brutal men to wonder how it helps shape how teenagers talk and think about sex and, by extension, their ideas about masculinity, femininity, intimacy and power,” Jones wrote.
Mas por outro lado…
The truth, she argues, is that porn is like food. Much of it is harmless. And some of it is bad. But some of it is simply good. Younger people who are lesbian, gay, bisexual, or transgender, growing up in a small town without friends who share their sexual orientation, might discover in pornography a window into their own experience—and the message that there is nothing wrong with their feelings. “They might see pornography almost like a safe space,” Rothman says. “It can be inspiring and really helpful.”
Mas olhe que…
“It’s not a Playboy magazine anymore,” Fonte said, citing familiar but no less crucial facts about the kind of explicit material available to kids today. “It’s bodies in motion—amplifying certain beauty standards that are harmful; amplifying lack of protection in certain cases, void of emotional intimacy; and, because race is a genre, amplifying racist sexual violence.”
Portanto…
Without that kind of guidance, how are teenagers supposed to have any idea how to be good people in the world we’ve created?
If parents imagine that they have nothing more to worry about than their teenagers coming across explicit material—or a too-liberal curriculum aimed at helping them process the stuff—then they’ve hugely underestimated the task before them.
Se deu rapidamente para perceber o quão complexo é o tema, há que proporcionalmente entender que é preciso conversar sobre ele; pois só assim poderemos ter mais competência e aptidão para falarmos melhor sobre outros, interligados, como a regularização das profissões e dos e das profissionais de sexo.
Reduzir o debate a preconceitos, tanto à Esquerda como à Direita, é atrasar o progresso para uma sociedade mais justa; por outro lado, tê-lo não significa não entender que muitos trabalhadores do sexo o sejam por falta de opção - o importante é que, enquanto o sejam, não percam direitos, liberdades e garantias. E, também, que há quem o seja porque realmente gosta.
Já agora, alguém muito inteligente disse-me uma vez: é uma ilusão achar que apenas os trabalhadores do sexo vendem o seu corpo - é que todos o usamos para trabalhar.
Para terminar o tema numa nota positiva (?), e voltando ao OnlyFans, eis a razão do seu monstruoso sucesso:
“You can get porn for free,” she said. “Guys don’t want to pay for that. They want the opportunity to get to know somebody they’ve seen in a magazine or on social media. I’m like their online girlfriend.”
Outras histórias
The Walk é um projecto muito interessante: trata-se de uma equipa itinerante que percorre o caminho feito pelos refugiados sírios com um fantoche de 15 metros - Amal. A ideia é sensibilizar para o longo percurso que os refugiados têm de fazer até… lhes ser negado asilo. Vale a pena seguir a conta de Instagram:
Zoom dysmorphia is following us into the real world
In the age of Zoom, people became inordinately preoccupied with sagging skin around their neck and jowls; with the size and shape of their nose; with the pallor of their skin. They wanted cosmetic interventions, ranging from Botox and fillers to face-lifts and nose jobs. Kourosh and colleagues surveyed doctors and surgeons, examining the question of whether video-conferencing during the pandemic was a potential contributor to body dysmorphic disorder. They called it ‘Zoom dysmorphia’.
What If People Don’t Want 'A Career?'
Perhaps my favorite articulation came from YouTuber Katherout and the title of her May 2021 video: “I no longer aspire to have a career.” Aspire is the key word here. It’s not that she rejects all labor — she rejects how central it is to our sense of self and worth. Katherout’s idea is frequently misunderstood and dismissed as laziness, entitlement, and/or lack of ambition. That’s wrong. And I think we dismiss it at our own peril. To illustrate why, I’ll use a particularly egregious example from a recent article in Fortune.
Gostei muito do artigo Afeganistão, EUA e petróleo, e também do final, que abaixo reproduzo (pode ferir as susceptibilidades dos mais sensíveis):
No mesmo tema, e sugerido no artigo acima, vale a pena ler, na Folha de S. Paulo, Cabul pode ser a primeira vítima da ordem mundial pós-petróleo:
Para manter o óleo escoando e sustentar sua hegemonia na segunda metade do seculo 20, os EUA apoiraram a monarquia homicida saudita, fizeram vista grossa para as ocupações israelenses na Palestina, afagaram Saddam Hussein, cevaram a Al Qaeda, hóspede do Taleban, e transformaram o centro e o oeste da Ásia em palco quente da Guerra Fria. Esse tempo acabou.
Capisce?
Para fechar
Não se esqueça de votar no worst of the worst, uma sondagem promovida por The New Republic que tenta escrutinar quais as piores personalidades dentro da direita norte-americana. E há categorias muito bem interessantes, como:
e ainda: