Edição #18
Latitude Ocasional é uma newsletter escrita ao longo da semana, enviada aos sábados. Se tiver interesse, subscreva-a gratuitamente, através do botão abaixo, para a receber automaticamente na caixa de entrada.
Latitude 9.641 - Conakry
“Guinea is beautiful—we don’t need to rape Guinea anymore; we just need to make love to her”. A frase é de Doumbouya, o chefe militar que liderou o golpe de Estado que aconteceu esta semana na Guiné:
Um grupo de militares reclamou a tomada do poder na Guiné-Conacri, com o líder do golpe a anunciar numa emissão na televisão estatal que a Constituição foi suspensa, o governo dissolvido e as fronteiras fechadas, quando surgia um vídeo que mostrava a aparente detenção do Presidente, Alpha Condé, de 83 anos.
Condé não será o ditador “de livro” mas também não foi original: “ex-opositor histórico, preso e até condenado à morte, tornou-se, em 2010, no primeiro Presidente eleito democraticamente”, que, depois:
[…] drifted from his democratic promises, consolidating power while leaving most Guineans in poverty. His tenure was marred also by ethnic violence, his government’s brutal crackdowns on protesters, and an Ebola outbreak that killed more than 2,500 people. By the time Condé announced his plans to scrap a constitutional two-term limit in 2020—thereby allowing him to run for a third term—his democratic credentials were essentially nil.
Mais um déspota. Naturalmente, condenamos sempre a violência. Vai daí, sai este tweet de Guterres:
É importante não esquecer, ainda assim, que por vezes a única forma de retirar alguém do poder é com golpe de Estado e nós em Portugal temos um carinho especial por isso. Eu pelo menos tenho. Agora, resta ver como se vai desenrolar o processo de (re)implantação da democracia neste país.
De diplomacia neutra para diplomacia interesseira, vamos à China.
O artigo China Is OK With Interfering in Guinea’s Internal Affairs despertou a minha atenção. A China, que segue há vários anos (décadas?) uma realpolitik de não-interferência, juntou-se aos pedidos de paz e democracia da comunidade internacional. Eis a razão:
China was all-in on Condé, relying on him to facilitate the mining and selling of minerals like bauxite (around 50 percent of China’s supply comes from Guinea, making it China’s number one source of the mineral) and iron ore, which are used for making steel and aluminum, respectively. Beijing’s opposition to Condé’s ouster is thus geopolitically understandable.
E não é que o preço do alumínio disparou mesmo:
Aluminum prices hit their highest level in 10 years following a military coup in Guinea. The West African nation is the world’s largest exporter of bauxite, the raw material needed to produce alumina, which is used to make aluminum, and investors are concerned about supply shortages.
Latitude 13.692 - San Salvador
El Salvador tornou-se no primeiro país a reconhecer a bitcoin como moeda de troca legal:
A legislação também estabelece que todos os agentes económicos podem receber bitcoin como forma de pagamento “quando oferecido pela pessoa que adquire um bem ou serviço” e que o ramo executivo criará a estrutura institucional necessária para a circulação da moeda, de acordo com as disposições da lei.
A medida é ideia do presidente Nayib Bukele, que integra esta edição de modo a que não haja equívocos sobre a sua política:
But the rollout of cryptocurrency has been upstaged by a more urgent concern: a series of withering attacks by Bukele and his ruling party on El Salvador’s three-decade-old democracy. In recent days, Bukele loyalists on the Supreme Court systematically cleared the way for him to seek reelection in 2024, despite a constitutional ban on consecutive presidential terms.
Epá, usar o poder judicial para aumentar o limite de mandatos, onde é que já vimos isto?
Usar as criptomoedas como moeda oficial é bastante estúpido, uma vez que ora com 0,0000001 bitcoins podemos adquirir um carro, ora no dia seguinte nem para comprar água chega.
Como disse Rodrigo Ávila, deputado da oposição, trata-se de “um mecanismo monetário volátil e a sua utilização gera uma situação grave se não forem tomadas as medidas apropriadas.”
O presidente de 40 anos garantiu grandes bases de apoio para a sua eleição, há dois anos, através das redes sociais. É assim que agora se ganham eleições em várias latitudes, e é por isso que já pouco importa se a pessoa percebe alguma coisa de política (direitos, liberdades e garantias?), se é tolerante, ou se tem idoneidade.
Bukele, a former marketing executive, used his social media savvy to win election in 2019 with a campaign that fed off widespread anger at the corruption and economic inequality that has dominated El Salvador for decades.
Bukele’s criticisms of the past resonate with many Salvadorans, said Manuel Meléndez-Sánchez, a Harvard University PhD candidate in political science who was born and raised in El Salvador.
“The diagnosis of problems wasn’t necessarily wrong, but throwing away democratic institutions is not the answer and can never be the answer,” he said.
Por causa dessa mesma descentralização, que Bukele diz vir ajudar os muitos salvadorenhos que não têm conta bancária, o Instituto da América Central para Estudos Ficais adiantou que iria colocar El Salvador na lista dos paraísos fiscais para lavagem de dinheiro.
Faz sentido.
Latitude 18.442 - Bahia
Impressionou-me imenso este relato que vi no Facebook:
O Brasil de Bolsonaro - como os EUA de Trump e os seus resquícios (?), a Índia de Modi, etc, etc... - continua a percorrer a grande ritmo o caminho da iliberalidade. Não se pode estudar isto ou aquilo, não se pode questionar, não se pode duvidar e muito menos seguir caminhos alternativos sem sentir consequências. E o que mais entristece é que quem pega no escudo do iliberalismo jamais o larga. Prefere juntar-lhe uma pá e cavar um fosso cada vez mais fundo do que libertar-se da armadura e experimentar a tolerância.
Depois, com uma polarização tão grande (até me custa dizer ‘à Direita’ - é só sede de poder misturada com fanatismo religioso e muita estupidez) de um lado, naturalmente o outro tem de se mobilizar.
Assim, é nos casos mais extremos que, infelizmente, se percebe que a democracia é o melhor sistema e que é mesmo representativo do povo, apesar de todos os (bastantes) defeitos que possa vir a ter - já agora, esses defeitos derivam das acções dos homens e dos homens nas instituições, e não pelo conceito per se de democracia.
E é o melhor sistema porque permite um escrutínio ao governantes que mais nenhum concede. Isso verificou-se com a alta popularidade da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a gestão da pandemia por parte da tutela:
Segundo dados obtidos pelo jornal O Globo, a CPI obteve mais engajamento online em maio que a discussão sobre vacinas, a morte do ator Paulo Gustavo e o Big Brother. No primeiro dia, a CPI atingiu 37,85% das publicações no Twitter e Facebook no Brasil. E, de facto, os números comprovam-no: a rejeição do presidente coincide com o momento em que o inquérito parlamentar virou assunto nacional. Inclusive, não seria exagero dizer que está sendo acompanhado ao vivo pela população brasileira tal qual um reality show.
O excerto acima é de um longo texto do projecto de informação digital Setenta e Quatro, cuja leitura recomendo. Do artigo#CPIdaCovid: Bolsonaro na Mira do Senado e da Internet, destaco ainda:
A grande esperança é que a classe política perceba que o país está prestando atenção e se sinta compelida a atuar de forma eficaz. Segundo o jornal O Globo, Omar Aziz, presidente da CPI, confessou a um interlocutor que tem medo da reação do seu eleitorado caso a investigação não resulte em nada concreto. “Como vou andar pela rua, como vou ser reconhecido pelas pessoas no aeroporto, se fizer isso?”.
Outras histórias
Nota: A secção outras histórias não apresenta, de todo, qualquer tipo de subtexto do género “histórias que não são demasiado importantes ou interessantes para fazer título”. Desta forma, não há nenhuma relação de relevância mas, sim, de timing: ora porque não li o suficiente sobre determinado tema ora porque outra história me pareceu mais premente em dado momento.
Serve a nota para dizer que (não sei se interessa a alguém mas pronto) estou muito atento às movimentações e leis anti-aborto nos EUA e outras latitudes. Esta semana sucedeu mais um deprimente avanço (retrocesso).
Em tempo útil, dedicarei a manchete devida. Por agora, cito How the Texas Anti-Abortion Movement Helped Enact a Near-Complete Ban:
Abortion clinics emptied out last week after a Texas law enacting a near-complete ban on abortion went into effect. But Prestonwood is not one of those clinics. It is instead among the state’s more than 200 “crisis pregnancy centers,” facilities aligned with anti-abortion organizations that offer free medical tests and counseling in hopes of dissuading women from terminating their pregnancies.
No mesmo assunto mas no país vizinho, temos, para animar: Mexico decriminalizes abortion, a dramatic step in world’s second-biggest Catholic country:
Ten supreme court judges ruled unconstitutional a law in northern Coahuila state that imposed up to three years of prison for women who underwent illegal abortions, or people who aided them. The 11th judge was absent during the vote. The ruling is binding on other states.
Uma boa oportunidade ̶p̶e̶r̶d̶i̶d̶a̶ ganha, até porque diplomacia com abusadores é cobardia. Eis a história: A Skeleton for Diplomacy: How a Plan to Reconcile France and Russia Collapsed.
The remains of Gen. Charles Étienne Gudin, who was killed in action in 1812 during Napoleon’s invasion of Russia, would be flown home with official pomp, and President Emmanuel Macron of France would host his Russian counterpart, Vladimir V. Putin, for a funeral that would serve as a symbolic burying of the hatchet.
Instead, General Gudin’s return to French soil on July 13 was far more low-key: His coffin was flown in on a private plane chartered by a Russian oligarch and was welcomed with a small ceremony in a grim hangar at Le Bourget airport, near Paris, next to a decommissioned Concorde jet. The presidents were nowhere in sight.
Gravíssimo: Revealed: LAPD officers told to collect social media data on every civilian they stop:
One internal document, which is undated but appeared to be several years old, listed the “keywords” and hashtags that the LAPD appeared to be monitoring through Geofeedia – and they were almost exclusively related to Black Lives Matter and similar leftist protests. It included #BLMLA, #SayHerName, Sandra Bland, Tamir Rice, #fuckdonaldtrump and the names of people killed by LA police that prompted major protests.
The list did not include any hashtags for rightwing demonstrations and far-right movements, which have grown increasingly violent in recent years in the region.Por último, um título interessante mas que, se formos a ver bem, não custa assim tanto entender - Why nations that fail women fail - mas não é preciso ir para latitudes muito distantes para ver isto a acontecer; nuns sítios é mais vísivel do que noutros, mas que existe por todo o lado, existe:
Societies that oppress women are far more likely to be violent and unstable.
There are several possible reasons for this. In many places girls are selectively aborted or fatally neglected. This has led to skewed sex ratios, which mean millions of young men are doomed to remain single. Frustrated young men are more likely to commit violent crimes or join rebel groups. Recruiters for Boko Haram and Islamic State know this, and promise them “wives” as the spoils of war. Polygamy also creates a surplus of single young men. Multiple wives for men at the top means brooding bachelorhood for those at the bottom.
Nota de pesar para a morte de Jorge Sampaio, um homem que batalhou por fazer de Portugal um país melhor.
Chegámos ao fim. Não foi muito animadora esta edição; mas fique atenta/atento à próxima que isto poderá piorar.
Até para a semana.