Edição #22
Latitude Ocasional é uma newsletter escrita ao longo da semana, enviada aos sábados. Se tiver interesse, subscreva-a gratuitamente, através do botão abaixo; se já é assinante, ajude a comunidade a crescer, partilhando-a com que poderá gostar de ler.
Latitude 38.4191 - Riace
Era uma vez uma pequena vila na região de Calabria, no sul de Itália. Nessa vila, e desde 1990, muitos migrantes encontram casa para viver e prosperar, longe dos problemas da terra de onde fugiram.
Várias centenas de pessoas que buscavam proteção viviam em Riace, uma pequena cidade que estava ameaçada de desaparecer devido ao êxodo dos jovens. As pequenas associações e cooperativas criaram empregos para moradores e refugiados em oficinas que reviveram os antigos ofícios de tecelagem, cerâmica, bordado, processamento de vidro e madeira e passaram a vender os produtos aos turistas. A atenção com os migrantes também trouxe trabalho para a população. Mesmo com alguns conflitos, a pequena cidade conseguiu um modesto crescimento ao longo dos anos.
O grande responsável pela continuidade deste convívio entre locais e migrantes, e a forma como a cooperação e a multiculturalidade promoveu a economia e os tecidos cultural e social, é Domenico Lucano, que em 2017 recebeu o Prémio da Paz de Dresden pelo seu trabalho em Riace, entre 2004 e 2018.
E. agora questiona o querido leitor ou a querida leitora: e o que é feito de Domenico, apenas quatro anos depois?
Eu respondo: Está em prisão domiciliária.
Em outubro de 2018, Lucano foi preso, depois banido de Riace e não teve mais permissão para entrar em sua cidade. Ele levou quase um ano até poder retornar. Foi acusado de ajudar e incitar a imigração ilegal e de não usar os fundos destinados ao acolhimento de refugiados de forma adequada.
Chegados aqui, e podendo ser verdade que Lucano não cumpriu as diligências necessárias na atribuição de fundos de apoio a refugiados e em contratos municipais, assim como ter facilitado casamentos de conveniência, importa apresentar a segunda personagem desta história:
However, his [Lucano] defiance, which included a call against “every form of racism, fascism and discrimination”, irked Matteo Salvini, the leader of the far-right League, who became interior minister in early June [2018] as part of a coalition government with the anti-establishment Five Star Movement. The minister has insulted Lucano and his integration method.
Lucano’s arrest came a week after Salvini unveiled a series of anti-immigration measures that included slashing funds for migrant reception and integration, leading many to suspect a political motive. The arrest also followed the suspension by the public broadcaster, Rai, of a TV show about Riace’s exemplary integration model.
Soube-se agora, no final de setembro, que a sentença é de 13 anos e dois meses, o dobro que o Ministério Públio italiano pedia…
“They arrested him for humanitarian acts,” his brother, Giuseppe, told the Observer.
Latitude XXX - Pandora Papers
Os XXX é o mesmo que se encontra em sites de conteúdo sexual, tal é a escala pornográfica de mais uma revelação de evasão fiscal. Noutros temas, para casos que poderiam espelhar semelhança, escrevi Global; neste não se trata disso porque, como veremos abaixo, a evasão fiscal está circunscrita a latitudes muito específicas.
Abaixo deixo alguns links importantes, para perceber se alguma coisa vai mudar ou fica tudo na mesma, como aconteceu aquando da última revelação do género - os Panama Papers.
O mundo do jornalismo está super entusiasmado - e bem - e acredita que os leaks trarão consequências, dada a dimensão da coisa:
The Pandora papers are a leaked cache of 11.9m files from companies that specialise in creating offshore companies and trusts. They are the latest major data leak to expose an alternative financial world where the super-rich can hide their assets and pay little or no tax.
EU tax haven blacklist trim ‘grotesque’ after Pandora papers, say critics [artigo completo aqui]
The Pandora papers should be a wake-up call, Giegold added. “The Pandora papers show that the advances in international tax cooperation are not enough,” he said. “The global minimum tax only applies to large corporations, but not to the letterbox companies of the wealthy and corrupt. We need full international transparency about the real owners of letterbox companies and real estate.”
The Fatal Flaw in the West’s Fight Against Autocracy [artigo completo aqui]
The newly released Pandora Papers reveal in stark detail the critical role major Western countries including the United States, the United Kingdom, Canada, France, and Germany play in enabling dictators and autocrats by allowing illicit transnational flows of cash to flourish. With nearly 12 million documents, the release pulled back the curtain on a huge number of kleptocratic networks.
Over and again, democratic leaders have dropped any pretense of working for the West’s—for democracy’s—best interests. Instead, they’ve created an entire cottage industry of former Western leaders hopping in the pockets of these kleptocratic figures—all while those same figures use and abuse industry after industry in the West for their needs.
Side story
Alguns beneficiados e criminosos
Rei da Jordânia
Presidente do Azerbaijão
Presidente da República Checa
Presidente da Ucrânia
Presidente do Quénia
Jonathan Aitken, ex ministro britânico
Tony Blair
Círculo íntimo de Vladimir Putin
Em Portugal, o trio maravilha: Morais Sarmento, Manuel Pinho e Vitalino Canas
…
Certa semana dedicar-me-ei ao tema do capitalismo e como tudo o que venho escrevendo acaba por ser consequência do mesmo. Enquanto essa edição não chega, partilho um artigo de opinião que coloca como origem do capitalismo a exploração exaustiva na ilha da Madeira (sim, parabéns a nós! - Destaque mais abaixo)
Trashing the planet and hiding the money isn’t a perversion of capitalism. It is capitalism.
The justifying fairytale capitalism tells about itself – you become rich through hard work and enterprise, adding value to natural wealth – is the greatest propaganda coup in human history.
When we see the same things happening in places thousands of miles apart, we should stop treating them as isolated phenomena, and recognise the pattern. All the talk of “taming” capitalism and “reforming” capitalism hinges on a mistaken idea of what it is. Capitalism is what we see in the Pandora papers.
O excerto sobre o grande contributo da nossa nação valente:
Capitalism was arguably born on a remote island. A few decades after the Portuguese colonised Madeira in 1420, they developed a system that differed in some respects from anything that had gone before. By felling the forests after which they named the island (madeira is Portuguese for wood), they created, in this uninhabited sphere, a blank slate – a terra nullius – in which a new economy could be built. Financed by bankers in Genoa and Flanders, they transported enslaved people from Africa to plant and process sugar. They developed an economy in which land, labour and money lost their previous social meaning and became tradable commodities.
Latitude 48.8566 - Paris
Foi na capital francesa que Jean-Marc Sauve apresentou um relatório independente sobre abusos sexuais e pedofilia praticados durante anos por padres e outros assalariados da igreja católica francesa (Estado francês?).
Infelizmente, a história de abusos sexuais no seio da igreja católica não é original; não obstante, há que apelar à nossa capacidade de indignação, pois aquilo que lhe falta em originalidade acresce em gravidade.
Desta vez, identificaram-se “entre 2900 e 3200 pedófilos na Igreja Católica francesa desde 1950.” e essa é “uma estimativa mínima", baseada no censo e na análise dos arquivos (Igreja, justiça, polícia judiciária e imprensa) e nos testemunhos recebidos por este organismo, como escreve a Lusa.
Os abusos terão feito mais de 300 mil vítimas. No Expresso, pode ainda saber-se que:
O relatório de 2.500 páginas identifica cerca de 3.000 abusadores - dois terços dos quais padres - que trabalharam na igreja francesa durante 70 anos.
A Igreja Católica mostrou "até ao início dos anos 2000 uma profunda e até cruel indiferença para com as vítimas", considerou Jean-Marc Sauvé, que lidera a comissão independente desde 2018.
Além de mais um direito à indignação com a notícia Abalada por denúncia de abusos sexuais contra menores, igreja francesa pede dinheiro aos fiéis para pagar indemnizações, pouca novidade há a retirar.
O que importa, na minha leitura, levar desta história é sublinhar que a religião em geral e a igreja católica em particular são invenções do homem, feitas para controlo de população e manutenção de poder e privilégio. Não fosse já tudo demasiado mau, só por si, ainda conseguem destruir vidas de milhares (milhões?) de crianças e adultos por todo o mundo.
Os casos são tantos que é plausível dizer que a pedofilia não se trata de uma excepção nem de um defeito, mas sim regra e feitio da igreja católica.
Para perceber há quantos anos padres e outras personalidades ligadas à igreja adoptam este comportamento criminoso, este livro, recentemente editado, pode ajudar:
Para fechar o tema, temos ainda este tesourinho: Igreja portuguesa recusa revelar dados sobre abuso de menores
Outras histórias
Uma boa notícia: Abortos retomados no Texas após suspensão de lei que os proibia - naturalmente, não os abortos per se mas o direito ao aborto. Sobre isso, convém também olhar para o verbo usado no seguinte parágrafo do jornal Expresso:
Já a 'Planned Parenthood', maior promotora de abortos naquele estado, não confirmou se retomou os abortos, apontando que a incerteza continua e que há a possibilidade de um tribunal voltar a colocar a lei em vigor após recurso.
Talvez essa não seja a melhor escolha - não é trabalho da PP promover o aborto mas sim a escolha das mulheres entre interromper a gravidez ou não, sendo, desta forma, um agente activo na planeamento familiar, independentemente do que isso significar.
Entre o ‘apagão’ das três apps detidas pelo Facebook e o depoimento de Frances Haugen, muito reflexão deveria ser feita sobre o papel deste gigante tecnológico. No meio podemos ainda incluir os planos para o Metaverse:
Mark Zuckerberg is betting on a new version of the internet. It's called the Metaverse, and the CEO wants Facebook to be at the forefront of this technology. In fact, he envisions a future where you won't just log onto his company's products; you'll live, work, and hang out in them.
He called it “the next generation of the internet and the next chapter of us as a company”. It's a massive reimagining of the social network that will require huge annual investments. In fact, Facebook is spending “billions" on it, hoping to eventually make money when it succeeds.
Na edição anterior, abordei como a tecnologia está ser utilizada de forma a promover os governos iliberais. Mais uma história para juntar: LinkedIn hides Chinese profiles of journalists over 'prohibited content'
LinkedIn is restricting the profiles of US journalists and academics from the company’s Chinese site, affected users have said. The US-headquartered company cited "prohibited content" in messages sent to the users, informing them that their profiles "will not be made viewable in China."
Interessante reflexão: The Very Real Decline of All We Hold Dear As Told Through the Progressively Shittier Spider-Man Movies
The homogenization of Hollywood, and the race to monetize every piece of intellectual property under the sun, is nothing new. In 2017, The Ringer dedicated a week of coverage to “good bad movies,” the zany action movies and hokey dramas that are objectively sort of ass but subjectively enjoyable, and how they no longer exist. More than any referendum on taste or quality, I think what characterizes a good bad movie is the ease with which you can just… watch it.
Para fechar
A resposta à pergunta abaixo é fácil: Remover.