Edição #40
Latitude Ocasional é uma newsletter escrita ao longo da semana, enviada aos sábados. Se achar relevante, ajude a comunidade a crescer, partilhando-a com quem poderá gostar de a ler.
Pergunta da semana:
O que terão pensado os elementos da comitiva da seleção nacional de futsal, quando recebidos por Marcelo Rebelo de Sousa, no momento em que este começou a falar sobre a aplicação dos fundos europeus?
Resposta no final da edição.
Latitude 45.4215 - Otava
O tema tem sido recorrente no alinhamento dos telejornais, pelo que será sobejamente conhecido pelas pessoas (sim, estou a arriscar nesta dedução). Mas podemos, também, ir à boleia dos jornais, como o Público, para sabermos o que se passa:
A situação em Otava está “fora de controlo”, admitiu este domingo o presidente da câmara da capital canadiana, com o centro da cidade bloqueado há mais de uma semana pelos protestos contra as restrições impostas para conter a pandemia de covid-19. De forma a tentar controlar a ocupação que se prolonga há já dez dias, Jim Watson declarou estado de emergência na cidade.
No sábado, o chefe da polícia local, Peter Sloly, queixou-se de falta de recursos para policiar o protesto dos camionistas, que levaram mais de 500 camiões para o centro da cidade e contam com o apoio de milhares de pessoas — mais de sete mil só no sábado, segundo a polícia.
Para enfrentar uma situação que está a ser promovida no outro lado da fronteira, pela ala mais radical do Partido Republicano, como uma batalha em defesa das liberdades individuais, o presidente da Câmara de Otava pediu o apoio das autoridades federais para lidar com “a mais séria situação de emergência que a cidade alguma vez enfrentou”.
O que foi exigido, então, pelas autoridades canadianas, para tais protestos?
Que todos os camionistas que atravessassem a fronteira dos EUA para o Canadá estivessem vacinados ou que fizessem um período de quarentena. De resto, as mesmas medidas já em prática para qualquer pessoa que entre no Canadá.
Há duas coisas supramencionadas no artigo do Público que muito valorizo: o direito à manifestação e as consagração das liberdades individuais. E há outra de que gosto muito também, e que funciona como cola dos conceitos anteriores: a legitimidade.
Por isso, a pergunta que se deve fazer, na minha óptica é: Será legítimo o protesto que está a decorrer há duas semanas em nome das liberdades individuais?
Comecemos pelas liberdades individuais; neste contexto, até porque se chama “comboio da liberdade”, liberdade individual significa estar contra a vacinação obrigatória - um argumento pouco original, utilizado pelo mais amador dos grupos anti-vax. Pois bem, eu concordo: acho que a vacinação não deve ser obrigatória para ninguém, nem a da covid-19, nem a da hepatite, nem a do tétano - em nome da liberdade individual, as pessoas devem poder escolher se querem ou não estar mais protegidas.
Se o raciocínio acabasse aqui, terminaria o projecto que é esta newsletter, registar-me-ia no grupo QAnon mais próximo e votaria no Chega. Mas nunca poderemos ficar a meio do raciocínio, porque as liberdades individuais não funcionam só para quem as evoca (é como a liberdade de expressão): as liberdades individuais das restantes pessoas não podem ficar comprometida.
Assim, se Sujeito A não quer vacinar os filhos, está tudo bem, mas essas crianças não vão para a escola, brincar e infectar os meus. Portanto, os camionistas não têm a sua liberdade individual comprometida - podem não se vacinar; terão, logicamente, de sofrer as consequências de viver em sociedade: não ser agente de infecção dos outros. Ou seja, a legitimidade para a manifestação é muito curta, pois não reivindica melhores medidas, melhores salários, melhores condições de trabalho - é pura e simplesmente abolicionista de medidas que já se provaram eficazes.
Isso significa que não podem, de todo, manifestar-se? Não; podem e devem, mas não há sustentação lógica para um protesto durante este tempo todo - é o tempo de paralização que traz êxito aos protestos. Comparando, é legítimo que os professores façam greve um dia, não uma semana. Estes números (1 dia vs. 7 dias) são simbólicos e servem apenas o propósito de comparação e adequação às causas; variam, naturalmente.
Além disso, numa fase em que claramente o mundo não aguenta mais restrições, estes protestos não são anacrónicos e é importante ouvir o povo exprimir-se. Mas o problema (ou solução) é que 1) É a alta taxa de vacinação que nos permite ter a economia aberta face ao ano passado; 2) Os protestos fugiram à sua causa inicial e assumiram outra dimensão - e só duram tanto tempo por causa do que está no parágrafo seguinte:
Polls in Canada show strong support for the public health measures, and 90% of Canada's truckers have been vaccinated while 90% of all Canadians have received at least one vaccine dose. While 64% of Canadians say they don’t support the protesters, 32% of Canadians recently said they had "a lot in common" with the way the Ottawa protesters see things, and a majority — 54% — of Canadians now say they want all restrictions to end, according to a survey from January 31st.
Este conteúdo é muito importante pois leva-nos a outras dimensões dos protestos: a primeira é que o que começou como anti-vacinação, agora é contra todas as restrições impostas; a segunda é o aumento do espectro da base de apoio aos protestantes - o que se começou num protesto muito específico foi-se diluindo até ser uma manifestação anti-sistema. Aqui, importa conhecer um bocadinho melhor (não é preciso muito) o organizador-mor:
O vídeo tem 1:48 e eu estava determinado a transcrevê-lo por completo mas a quantidade de alarvidades é tão grande que fiquei-me, estoicamente, pelos 27 segundos; aqui segue: What people don’t understand is that there’s an endgame and it is called depopulation… depopulation of the Caucasian race or Anglo-Saxon, and that is what the goal is: to depopulate the Anglo-Saxon race because they’re the ones with the strongest bloodlines…
É a partir daqui que podemos compreender melhor o que está a acontecer: há uma base ideológica de extrema-direita muito maior do que ser-se anti-vax (o que já seria mau o suficiente, mas, hey!, liberdades individuais all the way).
Since then, the protest has attracted those opposed to all federal and provincial pandemic COVID-19 measures as well as various far-right and hate groups. Supporters now include neo-Nazis, Canadian supporters of the former U.S. administration, QAnon conspiracy enthusiasts (including Romana Didulo, the self-declared monarch of Canada who has been investigated by the Royal Canadian Mounted Police for inciting her followers to violence), and some members of Canada’s Conservative Party and its extremist breakaway, the People’s Party of Canada.
Três artigos para compreender a apropriação de um protesto:
The whole world should be worried by the ‘siege of Ottawa’. This is about much more than a few anti-vaxx truckers:
What’s unfolding in Ottawa is not a grassroots protest that has spontaneously erupted out of the frustration of local lorry drivers," she wrote. "Rather, it’s an astroturfed movement – one that creates an impression of widespread grassroots support where little exists – funded by a global network of highly organized far-right groups and amplified by Facebook’s misinformation machine.
Canada's trucker protesters aren't who Americans might think:
[Tucker] Carlson, [Donald] Trump and [Elon] Musk see something monumental here. They're wrong. Whatever the facile comparisons, familiar symbols and fearful words, this Canadian protest isn't a grassroots revolt or even a Prairie brushfire. More likely, it's a winter carnival, ephemeral, a flaring of anger -- and one that is very, very Canadian. What unites them is their opposition to lockdowns and mask and vaccine mandates.
The American right uses truckers to import right-wing fury into Canada
In demonstrating loud, incessant opposition to a vaccine requirement implemented by a leftist politician, the truckers have become heroes to the American political right. And that has meant the concomitant appearance of misinformation, political posturing — and frustration for the Canadian government.
Outras histórias
Why Can’t We Pay Attention Anymore?
What both books get right is that the problems they surface are systemic, and that the vast majority of solutions proffered consist of individualistic, self-helpish advice that can be followed only by the privileged. Indeed, at the intersection of both books sits the Stanford M.B.A. and tech entrepreneur Nir Eyal, who has written two books.
The first, called “Hooked: How to Build Habit-Forming Products”, has been used by scores of companies to — you guessed it — make our technology habits more addictive. The second, printed with a similar canary yellow cover, is called “Indistractable: How to Control Your Attention and Choose Your Life”, in which he gives individuals advice for maintaining focus in a world of distractions. They might as well have been a two-volume set on how to build a for-profit system that is so annoying, addictive and distracting that people will pay you to teach them how to bypass it.
From Spencer to Licorice Pizza: why are women suddenly running on film?
Flurries of movement such as this one have acted as a signpost for freedom since the start of film. Yet in the past couple of months, a slew of new movies have made emphasised one kind of movement in particular, with scenes of women running. […]
In visual terms, running has an inherently cinematic quality: film is, after all, a medium that celebrates movement. But as Richard Dyer wrote in 1994 about the action movie Speed, the freedom to move and traverse space unquestioned involves a privilege “that is coded as male (and straight and white, too) but to which all humans need access” (we should add non-disabled to his list). He noted that the pattern of thrilling audiences with sensational movement was common to films that celebrated male power or machismo, and that therefore took bodily freedom as a given.
[…] For instance, Léa Seydoux spent much of her screen time in Wes Anderson’s The French Dispatch naked, posing for a portrait by contorting herself into impossible shape after impossible shape, dangling above hot radiators and hovering on a stool, constantly struggling to keep still. As Anderson’s film cheekily concedes, inertia has, for centuries, been the essential style of women in visual culture, or as John Berger wrote 50 years ago, “Men act and women appear.”
Sai um Chega comestível para a mesa da direita
Sobre as regras para a eleição do vice-presidente da Assembleia da República já escrevi o que tinha a escrever. Também sobre as acusações de violação das regras democráticas e da tradição parlamentar ou de se darem ao Chega argumentos para se vitimizar em vez de os integrar no sistema. Mal estaríamos se, para não dar argumentos para a vitimização dos inimigos da democracia, obrigássemos democratas a votar neles, transformando uma eleição numa formalidade sem critério.
Mas há um lado mais interessante nesta conversa. Nas redes sociais e na comunicação social foram muitos os militantes e até deputados da Iniciativa Liberal que vieram em defesa da suposta tradição. Ainda o fizeram, apesar de tudo, em nome de qualquer coisa que se assemelhasse a princípios. Mais aguerridos foram os principais colunistas daquilo a que alguns chamam “direita observador”. É esse o seu papel: esticar a corda. Anos a esticá-la deram, aliás, todo o espaço de tolerância intelectual e moral a fenómenos como o Chega.
Mamadou Ba, na sua página de Facebook
Não há fascista algum que me mereça senão desprezo e luta e nunca respeito democrático. Nunca. No dia em que o tribunal legitimou a violência policial racista ao condenar a família Coxi, apesar da tamanha violência sobre ela exercida e o que país inteiro viu repetidamente em janeiro de 2019, aparece um cretino a dizer que o racismo se deve combater com falinhas mansas? É muito fácil ser-se anti-racista de circunstância e puxar pelos galões, invocando cínica e oportunisticamente pessoas, com a fibra do Zé da Messa. Esse valente que tombou às mãos da extrema-direita nunca hesitaria nem confundiria que lado escolher perante uma caça desencadeada pela fachoesfera.
Especial newsletter The Why Axis: É focado nos EUA mas com tanta importação (de ideias boas e más) é relevante estar atento ao que por lá se vai passando. Aqui estão dois temas supostamente menos “diretos”, mas que não deixam de fazer parte da sociedade ocidental. O assunto mais premente - a proibição de certos livros nos currículos e bibliotecas escolares - acabará por chegar a Portugal, mas isso abordarei noutra ocasião.
New data on the New Jim Crow
Mass incarceration is a self-reinforcing phenomenon: children of imprisoned parents are more likely to become imprisoned themselves, in a never-ending cycle of poverty, despair and violence. Starting in the 1960s, Southern Whites essentially made a conscious decision to inflict this cycle on their Black neighbors.
Academics have been studying these forms of structural racism for decades — indeed, there’s a whole field devoted to it. It’s no coincidence that today, at a time when White conservative racial resentment has again reached a fever pitch, that White lawmakers in the South and elsewhere are working to erase this racial legacy from the history books.
The American court system: Anti-democratic by design
In recent years, conservatives like Mitch McConnell have been hyper-focused on the courts for a simple reason: conservative policies are, broadly speaking, less popular with the public than they’ve ever been. And if you can’t win in the court of public opinion, you can simply take your policy preferences to the actual courts, where ideologically friendly judges are sure to give you a favorable ruling — especially if you’re concerned less with passing new legislation, and more with rolling back whatever your political opponents are doing.
Para fechar
Resposta à pergunta da semana: O que terão pensado os elementos da comitiva da seleção nacional de futsal, quando recebidos por Marcelo Rebelo de Sousa, quando este começou a falar sobre a aplicação dos fundos europeus?
Resposta: Então mas afinal fomos recebidos pelo líder da oposição?