Edição #44
Latitude 45.4642 - Milão
Infelizmente, não há sinais de que a invasão russa da Ucrânia vá terminar tão cedo. Todos os dias morrem milhares de pessoas, milhões ficam desalojados, cidades completamente destruídas - um cenário desumano que mostra o pior de que somos capazes. Iria agora escrever “ainda por cima, assente numa mentira descarada e numa legitimação pífia….” mas não será assim com todas as guerras? Talvez um ato tão bárbaro e cruel só possa vir de uma construção delirante que o legitima.
Escrever sobre actualidade em tempos de guerra é estranho porque é tema é tão forte e grave que usar espaço e tempo para outros assuntos, além de anacrónico, soa a um alheamento irresponsável. Por outro lado, o mediatismo da guerra, a proliferação das notícias (que acho que sim, tem de ser) e a catadupa de opiniões e opinadores constrange (a bem ou a mal) a abordagem ao tema.
Procurei, nas edições anteriores, destacar temas paralelos à ou consequentes da guerra - mais ou menos óbvios - e assim prossigo esta semana: “Uma das mais prestigiadas universidades italianas, a Milano-Bicocca, cancelou um curso livre sobre o romancista russo Fiódor Dostoiévski com o objectivo assumido de evitar qualquer polémica “neste momento de grande tensão.”
A frase acima é retirada duma notícia do jornal Público, cujo parágrafo termina com “A decisão, que motivou reacções indignadas do ex-primeiro ministro Matteo Renzi e da actual ministra do Ensino Superior e da Investigação, Maria Cristina Messa, foi rapidamente revertida”
O tema interessa porque o caso é intrincado, não havendo, na minha opinião, uma resposta que sirva para todas as situações, ainda que sempre dentro do mesmo tema: o cancelamento/boicote a coisas/pessoas russas ou ligadas à Rússia.
Quem também pegou no tema esta semana foi o NYT, na newsletter Debatable, que num parágrafo (abaixo dividido) mostra como o caso se pode dividir, à cabeça, geograficamente:
In Russia, Disney and Warner Bros. have paused theatrical releases, and McDonald’s, Starbucks and Coca-Cola have suspended their business operations.
In the United States, liquor stores and supermarkets have pulled Russian vodka from their shelves, and the Metropolitan Opera cut ties with one of its most acclaimed sopranos after she criticized the war but refused to distance herself from Putin.
And in the international arena, Eurovision, FIFA and the Paralympic Games have banned Russians from participating in this year’s competitions.
Parece-me uma boa forma para começar a distinguir as coisas, sendo que ainda não chegámos ao tema de abertura, a literatura e a justeza ou estupidez de um cancelamento.
Que multinacionais deixem de operar na Rússia como protesto de discordância com os actos de Putin, ainda que este não seja direta ou imediatamente prejudicado, parece-me justo; no entanto, o que parece ainda mais justo é estas empresas condenarem inequivocamente a ditadura russa, com ou sem invasões (haveria várias formas de o fazer). Claro que isto traria problemas maiores a entidades que, no fundo, estão apenas preocupadas com o lucro, o capital, e, depois, a reputação.
Quanto à retirada de vodka das prateleiras, poderia haver algum resquício de justiça mas acaba apenas por ser parvo. Os consumidores podem escolher não comprar vodka por n razões face à invasão, mas retirar-lhes essa possibilidade não faz sentido. Além disso, sendo as importações de vodka pelos EUA tão baixas - economicamente inconsequente para Rússia - o boicote à vodka apenas fará sentir melhor a pessoa que o faz, não tendo efeitos práticos na Ucrânia, na Rússia ou noutra latitude. Mas para haver esse alívio de não-contribuição - seja na medida que for - tem de haver opção de escolha, o que significa que não pode haver banimento.
A nível empresarial, os diretores de compras têm a legitimidade de não querer ter vodka nas suas lojas, mas isso já acontece com qualquer outro produto. No limite, só se a única empresa que vendesse vodka fosse de Putin, ou tivesse o seu nome ou rosto é que poderia fazer algum sentido boicotar - mas aqui mais do que boicotar era meter a arder, tipo bandeira da confederação norte-americana. Um bom exemplo, neste plano, é o caso dos Hotéis de Trump. Pernoitaria num deles?
Neste ponto estava ainda a questão da artista Anna Netrebko; conhecida pelas posições pró-putin, foi despedida da Metropolitan Opera por não se demarcar do ditador. A decisão parece-me acertada: antes de artista, e sendo, neste caso, contratado por ser artista, o ser humano é uma miríade de coisas, tipos os ogres - têm camadas. A virtuosa soprano russa também é várias coisas e uma delas demonstrou valores incompatíveis com os do seu empregador - e uma organização pode e deve ter valores.
Ao escrever sobre isto lembro da estatuária em espaço público: uma estátua nunca evoca apenas o propósito para o qual foi edificada. Da mesma maneira que uma organização não admitiria um colaborador racista (ou não deveria) também é legítimo não querer ter pessoas alinhadas com ditaduras; e vou mais longe: como nas nossas amizades é legítimo que se rompa com saudosistas de Salazar (exemplo caricatural), por muito divertidas que essas pessoas possam ser.
Sobre a lista acima, falta abordar o último tópico: A arena internacional. Do ponto de vista das organizações supranacionais, não me choca a proibição: o objectivo não é prejudicar os atletas ou artistas mas sim o regime. Sendo injusto as pessoas (não alinhadas com a ditadura) sofrerem consequências profissionais das decisões do ditador, parece-me que cabe aos próprios atletas pensar como se sentem com a determinada bandeira associada.
Tocando, novamente, em questões de identidade e nacionalidade, o tema é pernicioso, pois cada caso é muito específico: um atleta anti-regime que tenha família na Rússia poderá não ser tão activista quanto outros. Certo é que o activismo vive do desconforto e cabe também a estes pensar se vale ou não a pena abdicar do conforto em prol de uma posição íntegra (para mim, isto significa ser-se pró-democracia). De resto, o caso que tivemos até foi precisamente o contrário: um atleta russo que subiu ao pódio com um Z colado no equipamento. Os democratas são intolerantes com os intolerantes.
Estas nuances pedem cautela, é preciso tempo para ver cada situação. Francisco Louçã escreveu um texto em que faz tábua rasa dos cancelamentos culturais. É perigoso. Ora vejamos:
As mais espetaculares expressões desta perseguição são as proibições culturais, a conferência sobre Dostoevski que foi anulada na Universidade de Milão, o afastamento de um estilista russo da Semana de Moda de Paris por não assinar um texto repudiando a invasão, a anulação pela Royal Opera House e pelo Carnegie Hall de representações do Bolshoi, a orquestra de Munique que despede o maestro russo e a cantora, a orquestra de Zagreb que anula concertos de Tchaikovski, os gatos russos interditados num festival internacional de felinos, as equipas russas e bielorrussas proibidas nos Jogos Paralímpicos, como noutros campeonatos desportivos, as televisões de propaganda do Kremlin censuradas na Europa.
Sobre a censura da TV russa, o tema já foi discutido amplamente nas redes sociais e claro que quem censura são os estados opressores, não os liberais - é fundamental percebermos como a propaganda russa funciona também para poder dar uma melhor resposta. Mas nem tudo é censura: é ser-se intolerante com os intolerantes, princípio básico dos democratas.
Assim sobre a frase destacada no excerto acima, importa olhar para ela com a mesma atenção que se olhou para Anna Netbreko. Para isso, é preciso pesquisar. E o que encontramos é o seguinte:
“Nossa equipe [Fédération de la Haute Couture et de la Mode] fez uma pesquisa aprofundada [desde o início do ataque à Ucrânia], para ver se ele havia se distanciado e qual era sua posição na esfera russa. Ficou claro que ele é um aliado do regime. Como tal, considero que ele não tem lugar no calendário”, continuou Toledano, observando que o facto de Yudashkin ter desenhado uniformes para os militares russos foi apenas um elemento entre outros.
Pronto.
Chegamos agora à produção cultural, com os exemplos do curso livre sobre Dostoiévski ou, tal como a primeira frase do tweet acima mostra, o boicote da Netflix a Leo Tolstoy. É nesta parte que se as coisas podem começar a complicar-se, uma vez que a cultura e a ficção não são alheias à dimensão social, isto é, como diria Ana Cristina Cachola, não são um momento à parte - também carecem de reflexão.
Dar uma palestra, seja em que altura for, numa universidade (o sítio é importante) sobre um autor que vanglorie os regimes ditatoriais, reforçando essa mesma ideia (contraditório é importante), parece-me inaceitável - se fosse na sede do Chega já faria sentido. Dar uma palestra sobre Salazar numa universidade, mostrando as consequências do Estado Novo, é interessante e educativo.
Boicotar uma palestra sobre Dostoiévski por questões de timing não faz sentido. Mas o exemplo é bom porque sabe-se que o autor russo foi nacionalista e imperialista, nomeadamente contra a independência da Ucrânia; sabe-se ainda que não era o maior fã da democracia, de uma constituição, etc. Grave? Muitíssimo. Tira-lhe relevo literário? Não. Tal como Eça de Queirós e os seus comentários racistas não o fazem. Podemos começar a olhar e descobrir outros autores e autoras, e, até, quem sabe, descolonizar o cânone? Se calhar era importante.
O que importa fazer - com ou sem invasões - é ter sempre a consciência do que é dito, como é dito e, se inadmissível aos valores liberais atuais, contextualizar e explicar. As pessoas têm camadas. Não devemos escolher olhar para umas e não para outras, fingindo que não estão lá porque dá jeito. Apreciamos Crime e Castigo e sabemos que o seu autor tinha posições abjectas. A escolha de o evidenciar em prol de outros diz muito sobre quem promove as actividades, mas a censura nunca é resposta.
Os tempos de crispação e iliberalismo escancaram-nos as preferências politico-ideológicas das pessoas e às vezes não gostamos do que vemos. Não é, claramente, tão duro como viver num estado autocrático, mas causa-nos desconforto ter de reavaliar com quem nos damos, que conversas podemos ter, se é que as podemos ter. Família, amigos, colegas de trabalho, a nossa malha social e afectiva é corroída pelas preferências iliberais que achávamos não existir. E corrói-se porque são importantes para nós - há quem não o faça, preferindo que tudo fique na mesma, ignorando, desvalorizando. Cada pessoa decidirá, colocará os seus limites. Infelizmente, tenho colocado os meus mais vezes que gostaria. Mas tal como este tema, as coisas não são lineares, e cada caso é um caso.
Dir-me-ão que me perco em pormenores. É certo que nada disto se assemelha à verdadeira tragédia de que estes temas são apenas consequência. E por isso mesmo tive uma casa, internet, um computador e tempo para escrever sobre isto. Pelo mundo todo, biliões nada têm nada mas essa realidade começou por algum lado e a história diz-nos que foi exatamente pela tolerância perante os intolerantes.
Outras Histórias - Especial Rússia/Ucrânia
The sanctions strategy is flawed. To defeat Putin, you have to know how the Kremlin works
Russian oligarchs will not put pressure on Putin, not now and not anytime soon. They stay silent, even as they watch their assets and fortunes dwindle. We should have expected this. The west misunderstands the concept of oligarchy in modern Russia, which leaves these powerful actors more beholden to the state – or president – than any outside influence, and prevents the jet-set tycoons we see in the western media from wielding real political power.
The above description is simplified, a rough sketch of the power dynamics in today’s Russia, but it offers important insights. These latest sanctions are unlikely to topple the regime because they do not prevent Putin from distributing rents to his core supporters. They decrease the size of the pie but the pie is still very large, and as long as he can do this, his inner circle will stand by him.
Putin needs to watch his back
The Russian national tradition is unforgiving of military setbacks. Virtually every major defeat has resulted in radical change. The Crimean War (1853-1856) precipitated Emperor Alexander II’s liberal revolution from above. The Russo-Japanese War (1904-1905) brought about the First Russian Revolution. The catastrophe of World War I resulted in Emperor Nicholas II’s abdication and the Bolshevik Revolution. And the war in Afghanistan became a key factor in Soviet leader Mikhail Gorbachev’s reforms.
Guerra, poder e fraqueza
A guerra na Ucrânia deverá acabar com o mito euro-atlântico de que a História tem uma direção que favorece sempre as democracias liberais. Tal nunca foi verdade. Sempre existiram líderes políticos como Vladimir Putin determinados a destruir as democracias pela força das armas ou pela subversão política interna através de apoio a partidos de extrema-direita e de extrema-esquerda. A violência, infelizmente, sempre fez parte da política internacional. A guerra não acabou. As democracias liberais que quiserem mesmo assegurar o seu modo de vida e os seus interesses terão de ter uma capacidade credível de dissuasão e, caso venha a ser necessário, de combate.
Outras histórias
Pakistan Broaches ‘Hijab Day’ for International Women’s Day
Pakistan’s minister of religious affairs has called for events marking this year’s International Women’s Day to be canceled and for March 8 to be rebranded as “Hijab Day” to celebrate a garment that faces no threat to its existence in this overwhelmingly Muslim country.
The minister, Noor-ul-Haq Qadri, has also demanded that the Aurat March—“aurat” means woman in “Urdu”—be banned, and he has written to Pakistani Prime Minister Imran Khan, a former professional cricket player and a playboy with a penchant for appeasing extreme religious groups, to declare International Women’s Day activities un-Islamic.
This Is Peak Subscription
Meanwhile, I still haven’t pulled the trigger on canceling Netflix, even though I’ve realized I don’t watch it at all for weeks at a time. I still want to see the Love Is Blind reunion, which won’t be available until Friday. And then I want to watch the new season of Drive to Survive, which comes out in a couple of weeks. That, according to Hardart, is what makes subscriptions such a good business. Once a company has you as a subscriber, the easiest, most friction-free thing to do is to continue subscribing. As long as it gives you just enough, you’re probably not going anywhere.
Why placebo pills work even when you know they’re a placebo
There are also other, less well-studied mechanisms that may be at play in open-label placebo effects. For example, when someone starts taking a treatment – placebo or not – they often begin paying closer attention to their own minds and bodies. Most conditions and symptoms fluctuate over time. For example, when we are experiencing a headache, even if we don’t take any medication or other action, the severity of that headache will naturally decrease over time. People who take open-label placebo pills may hope for improvement, making them more attuned to times when their symptoms subside. Other research shows that medical rituals – whether that’s taking a pill, getting an injection, or merely having a cup of tea and taking a hot bath – can evoke both expectations for healing and a conditioned response. Thus, the act of taking pills faithfully can become a healing medical ritual in and of itself.
Shitposting em tempos de cólera
Um dos mais cómicos protocolos online é a ansiosa expressão de certas urgências: querer saber se algo é “verdadeiro” ou “falso”, se é “irónico” ou “sincero”. Não é que estas distinções não sejam importantes — a questão é que a urgência em sabê-lo, numa rede social, só pode ter um objectivo: permitir reagir com igual urgência. É dizer, no fundo: “Preciso de saber o que é este tweet para poder fazer os meus tweets mais depressa.” É um sublime e inofensivo circuito fechado em que tudo parece muitíssimo importante, mas nada tem consequências: exactamente aquilo que “as notícias” são sempre, e que a vida noticiada, infelizmente, quase nunca é.
Para fechar
“If I lose an election, but Louisiana ends up in the next year electing a Democrat, a Black Democratic governor in 2023 and then follow that up by sending somebody else to the U.S. Senate later, that’s a win,” says Chambers. “This thing isn’t about me. This is about making sure that the opportunity exists for somebody to get there.”