Edição #45
Novo projecto!
O meu novo projecto é uma nova newsletter (sim, fiquei fã) mas desta vez não será semanal. 12 Pessoas em Fúria (toca a subscrever) é uma newsletter mensal que analisará as performances dos deputados do Chega à luz da democracia.
A Latitude Ocasional continuará até meados de maio, quando completará 1 ano de existência e consequente interregno por tempo indeterminado.
Latitude 30.9292 - Deraa
Foi há mais de uma década que, agregado ao movimento de revoltas no Magrebe, despontou a guerra cívil na Síria. De facto, registam-se esta semana, a 15 de março, 11 anos sobre a data dos primeiros protestos.
Os primeiros protestos aconteceram em Deraa, cidade que fica no sul da Síria, e lá um acontecimento simbólico mobilizou o país contra Bashar al-Assad. Em março de 2011, estudantes foram presos depois de realizar uma pichação contra o presidente do país com uma mensagem que anunciava que ele seria o próximo governante a cair.
Desde 2011, as várias facções rebeldes tentaram derrubar o ditador Bashar al-Assad, destruindo o país no processo. A situação piorou em 2014 com a entrada do Estado Islâmico no país, cujo m. o. é aproveitar-se da destruição para exercer um governo de terror onde possível.
Com tal cenário, milhões de sírios fugiram do seu país. Procuram, naturalmente, melhores latitudes para viver. No entanto, muitos não o conseguiram nem conseguirão: grande parte destes refugiados ficou retida na Turquia, a quem a UE paga para que ali permaneçam.
Muitos não aceitam o triste fado e arriscam a vida por outras vias que não a terrestre. Vai daí, lançam-se ao Mediterrâneo, em barcos de borracha sobrelotados, no desespero de encontrar melhores destinos. O que para uns é desespero para outros é negócio ilegal, que acaba por não garantir as melhores condições às embarcações - o que resulta na catástrofe humanitária que há anos assistimos. Mas há mais: aqueles que chegam e/ou são resgatados ao largo das orlas marítimas europeias enfrentam anos e anos de limbo processual, para não falar dos que são deportados.
A descrição desta realidade só tem duas coisas diferentes do que vemos hoje com os refugiados ucranianos: 1) o mediterrâneo não é relevante mas 2) o continente a que pertencem é. Nas linhas que se seguem exploro essas e outras questões que contribuem para a diferença de tratamento entre as pessoas.
A invasão russa à Ucrânia é uma tragédia cujas consequências ainda demorarão a apurar. Certo é que, além das consequências económicas, há já uma crise humanitária em curso, com milhões de deslocados ucranianos agora obrigados a afastar-se das zonas de guerra, migrando e refugiando-se.
A esta realidade tem-se justaposto outra: a onda de solidariedade, em vários países europeus, com o propósito de acolher refugiados ucranianos; um desses países é Portugal. Das coisas mais extraordinárias deste movimento altruísta é a sua natureza: uma conjugação entre iniciativa privada e poder local. Assim, pessoas abdicaram do seu trabalho, empresários colocaram capital à disposição e câmaras municipais contribuíram com instalações e outros recursos; tal façanha permitiu respostas muito mais célebres e o impacto na vida dos refugiados ucranianos é inestimável.
Esta empatia que vários portugueses (não só, mas sobretudo) sentiram é de salutar. É comovente ver os gestos de altruísmo que têm acontecido pelas várias cidades do país, como é o caso de Braga e de Leiria. Com este contributo humanitário incalculável, fica provado que, havendo vontade, é possível ajudar quem tem menos - é exequível ajudar refugiados, mesmo quando se encontram a mais de quatro mil quilómetros de distância.
Curiosamente, escrevi, em Dezembro, um artigo intitulado O que pode fazer a cidade quanto à crise dos migrantes? Longe de mim estava uma possibilidade de mobilização tão elevada a que recentemente vimos. Desta forma, com tamanha resposta, poder-se-á concluir, então, que acolher refugiados de guerra - indo, inclusivamente, buscá-los a latitudes muito distantes -, é possível. A pergunta que se segue é incontornável: Então e os refugiados de outras zonas de guerra?
O argumento mais imediato para relativizar a questão é que, não podendo ajudar todos, devemos apreciar o que de bom já está a ser feito. Devemos e apreciamos: metade do texto foi sobre isso. Não obstante, impõe-se uma análise ao comportamento humano no seu todo: motivações e ações – isso vai ajudar-nos na construção do mapa da empatia, e até que ponto se pode, ou não, ajudar mais pessoas.
Resgatar pessoas da Ucrânia ou da Síria, ou do Iraque ou Curdistão, é exatamente a mesma coisa: Dar melhores condições a pessoas que fogem da guerra. E se o problema é a viagem de carro ser mais longa, temos há mais de uma década pessoas a morrer ao largo do mediterrâneo. No entanto, é fácil achar que não se trata da mesma situação. Porquê?
Parece-me haver duas razões primordiais. Primeiro, por causa da televisão. As fronteiras da empatia traçam-se também pela mediatização dos temas. Se estamos constantemente a ver histórias de pessoas desalojadas, a fugir da guerra, é instinto básico, para alguns humanos, querer ajudar.
A segunda razão, mais intrincada, prende-se com identidade. As notícias sobre mais um barco a abarrotar de migrantes que afundou no mar não abalará tanto quanto a de ucranianos refugiados na Polónia – as ações de mobilização e resgate mostram isso mesmo. Assim, resta-nos entender que, de facto, só há empatia quando há identificação: entendemos os ucranianos iguais a nós, quando não fazemos o mesmo com pessoas de latitudes fora do continente europeu. Por muito que a empatia seja um valor humano imprescindível, esta esconde (revela?) o outro lado – que não nos conseguimos colocar no lugar de pessoas cuja identidade (a nível europeu) não coincide. Isso é lamentável.
Será, porventura, mais fácil achar que não é a identidade que tem um papel fundamental na geografia da empatia. Reconfortar-nos-á colocar outros obstáculos para justificar a indiferença, a xenofobia e o racismo que, enquanto europeus (seja lá o que isso signifique), está bem patente na forma como decidimos ajudar; mas não há volta a dar: as escolhas estão feitas, desde a partida para a Ucrânia até ao alinhamento do telejornal.
Vale a pena ainda ler o texto que o historiador José Neves publicou no seu perfil de Facebook:
O horizonte da solidariedade deve ser sempre universal. Fundar a solidariedade na condição ucraniana, europeia ou ocidental dos refugiados é um duplo erro. Secundariza os refugiados que não estão incluídos nessa condição ou identidade, mas também não faz jus aos que estão incluídos. A intensidade emocional vai passar. André Ventura pronto disse que estava de braços abertos para receber refugiados ucranianos, mas sempre acrescentou referir-se “aqueles que vierem por bem" e que não pretendem "dominar" Portugal.
Outras histórias
‘All art must go underground:’ Ukraine scrambles to shield its cultural heritage
Twenty-five works by one of Ukraine’s most celebrated painters, Maria Prymachenko, famed for her colorful representation of Ukrainian folklore and rural life, were burned when Russians bombed the museum housing them in a town outside Kyiv. Other museums in the capital are boarded up, their works still inside because those who would have evacuated them have fled.
Global democracy is in retreat
The report’s authors note that one of the most troubling trends in the United States right now is the toxic political environment. On a scale running from 0 to 4, where 0 represents civil disagreement and 4 represents open hostility, American political discourse currently rates a score of 3.93. Twenty years ago that same score stood at less than two.
“Political polarization is a division of society into Us versus Them camps whose members hold negative views of and distrust the other group,” the authors write. “When such camps align with mutually exclusive identities and interests, it undermines social cohesion and political stability.”
O Estranho Caso Da Sobrevivência Do Luso-Tropicalismo
"Não somos racistas" é, obviamente, a frase-chave aqui. Pelo que tem implícito de vergonha em relação à possibilidade de ser-se racista, mas também pelo recurso ao "nós", que invoca não instituições ou regimes, mas sim "povo", identidade nacional, caráter nacional. E, ainda, pela necessidade de tal ser afirmado, o que só pode acontecer face à possibilidade do seu contrário ou a uma acusação externa. Esta frase é dita em 2022 da exata mesma maneira que o era em 1941.
Portugal Liberal
Qual é o mistério? São as gasolineiras que fixam os preços dos combustíveis e fazem-no, como se esperaria, seguindo uma lógica da obtenção de lucro, uma lógica de mercado. Nada de novo aqui. As gasolineiras são empresas puras e duras. Não deveria ser sua a responsabilidade, e sobretudo o poder, de fixar preços que interferem tão profundamente com a vida das pessoas. “Porque é que os cães lambem os testículos? Porque chegam lá.” É o caso aqui.
Para fechar
O arquitecto Francis Kéré foi distinguido esta semana com o prémio Pritzker.
And even after earning international acclaim at exhibitions like the Serpentine Pavilion in London and the Venice Biennale, Kéré has continually directed his attention toward home.
And even after that, continua a perder a identidade para a nacionalidade, como nos mostra o título da notícia abaixo, donde retirei o parágrafo destacado.
Enfim. Adiante.
Vale muito a pena conhecer a história de Kéré:
O arquitecto como arquitecto, mas também como activista, como dinamizador comunitário, como angariador de fundos, como cidadão. O Pritzker 2022 é muitas coisas numa. Para Kéré a arquitectura só faz sentido se estiver ao serviço da humanidade e não de uma minoria de privilegiados. África é o seu território.
Filho mais velho do chefe de uma aldeia remota, Gando, Francis Kéré pôde estudar, privilégio que, de início, pouco lhe agradou. Tinha sete anos, escreve o diário espanhol El País, quando trocou as brincadeiras com os seus 12 irmãos por uma caminhada de 20 quilómetros para ir à escola. Uma caminhada que fez dele a primeira pessoa da sua aldeia a saber ler e escrever.
Desses dias na escola primária ficou-lhe, sobretudo, o gosto pela aprendizagem e a memória do calor que se fazia sentir no edifício mal ventilado. Também por isso, quando chegou a Berlim com uma bolsa e uma carreira de carpinteiro no horizonte decidiu que não ficaria por aí e formou-se em Arquitectura, em 2004, aos 39 anos, tendo já em carteira o seu primeiro projecto: uma escola na sua aldeia, para que os miúdos não tivessem de caminhar o que ele caminhou e pudessem estudar num ambiente fresco.
A propósito de arquitectura, vale a pena espreitar o artigo The 25 Most Significant Works of Postwar Architecture.