Belém
O sítio onde aconteceu um dos mais tristes episódios dos últimos tempos na democracia portuguesa.
Mais do que a consolidação do Chega como partido, André Ventura, tem, a título político e pessoal, muitos desejos. Infelizmente para ele e felizmente para nós, muitos estão a sair-lhe frutados. Mas é preciso ter cautela, pois troca-tintas de profissão consegue facilmente fazer-se vítima para esconder a frustração. E, caso nada resolva, a chantagem e a ameaça de violência. É mesmo verdade e grave.
Aconteceu esta sexta-feira, no dia em que escrevo, 29 de julho. Pela primeira vez testemunhei um deputado ameaçar o Presidente da República: caso Marcelo não faça com que o Presidente da Assembleia da República deixe de criticar André Ventura, os deputados do Chega poderão entrar em escalada de violência.
É isso mesmo. Mas vamos ler outra vez:
Pela primeira vez testemunhei um deputado ameaçar o Presidente da República: caso Marcelo não faça com que o Presidente da Assembleia da República deixe de criticar André Ventura, os deputados do Chega poderão entrar em escalada de violência.
Pior só se for o facto de Marcelo Rebelo de Sousa preferir não comentar, em nome da coerência (lol?).
Estas declarações aconteceram numa audição a pedido do chegano-mor, a propósito do dói-dói que Santos Silva tem feito no seio do Chega.
Sobre esta querela, há quem se tenha apressado a apontar falhas no percurso do agora presidente da AR, em vez de sublinhar, primeiro, o óbvio. A ordem das coisas interessa; quando uma casa está arder, alguém dizer “sim mas também já estava toda velha” em vez de fazer alguma coisa para apagar o fogo diz muito sobre essa pessoa (entre várias coisas, diz que não deveria escrever em jornais - sim, estou a falar do JM Tavares).
A teoria de que o Chega não é mais do que um grupo de tontos que em vez de se juntarem no café mais próximo vão dizer alarvidades para o Parlamento não é nova, mas ganha cada vez mais força. E é importante, ao mesmo tempo, pelo que vimos acima, não desvalorizar: um homem em fúria será sempre um homem em fúria.
Já sabemos que não é inédito resolverem-se problemas entre homens, em contexto social-bêbado, com recurso à violência. Na Assembleia não estávamos tão habituados mas o transfer está a ser feito graças ao Chega, e isso tem de ser sublinhado: no fundo, não muda nada, só o sítio; e como os sítios não fazem as pessoas, vários (muitos) portugueses e portuguesas decidiram colocar o bêbado do café no hemiciclo. Os resultados estão à vista pelo que acima escrevi e também por outras situações que já decorreram - por isso é que a ameaça que Ventura teceu não pode ser ignorada.
Imprensa garante que Líder da bancada do Chega ameaçou Assessor do PS “Parto-te a tromba, és um anão”
Segundo a CMTV o líder da bancada do Chega, Pedro Pinto, abordou o assessor do PS Nuno Saraiva num corredor da Assembleia da República e ameaçou-o com expressões como “parto-te a tromba” e “és um anão”.
Na origem do confronto estão as publicações de Nuno Saraiva nas redes sociais onde este aplaude o papel do presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, ao repreender o Chega: “É assim que se combatem os fascistas, racistas e xenófobos”.
Chega: ameaças e intimidações a jornalistas no Parlamento
Um assessor do Chega interpelou um jornalista da RTP em funções no Parlamento. E o líder da bancada parlamentar ameaçou um assessor do PS. Gabinete do secretário-geral da Assembleia da República diz que jornalistas acreditados não podem "ser questionados, seja por quem for, sobre o modo como exercem a sua atividade profissional".
Agora, um bom texto
Fiquei muito emocionado com este artigo (que também permite dar o salto para outro assunto, a seguir):
O fascismo anticristão do Chega, a Igreja e os jornalistas
É público que o líder do Chega se afirma católico, vai à missa e comunga. Não sei como pode fazê-lo. Não me atrevo a julgar o íntimo de ninguém mas, enquanto católico, creio que há uma total contradição entre comungar e gritar disparates como aqueles que ele e o seu partido tantas vezes gritam.
Na linguagem cristã, dizer que ninguém é perfeito é dizer que somos todos pecadores (= limitados na nossa imperfeição). Mas não falo da imperfeição inerente à condição humana. Uma coisa é ser imperfeito. Outra, bem diferente, é gritar coisas que são a antítese absoluta do Evangelho (não me refiro a ideias, porque o Chega não as tem; apenas grita mentiras, demagogias e indecências).
E é isso que se passa: o Chega defende, em muitas coisas, o oposto do Evangelho e da tradição cristã (e judaico-cristã). Quando Abraão acolhe os três estrangeiros em Mambré, é o próprio Deus que está a acolher. A história está no Génesis, o primeiro livro da Bíblia, no capítulo 18, caso porventura no Chega não a saibam localizar. A sua leitura é edificante.
[…]
Com os meus camaradas jornalistas tenho também um problema. Existencial, no caso: porque se dá tanto espaço e tempo a quem se limita a gritar e a criar epifenómenos que se esvaziam no momento seguinte?
Acho que já podemos concluir que Ventura só ganha com soundbites e clipes. A comunicação social, em crise e sedenta de views desde sempre, não está a agir eticamente. Os democratas não ouvem tudo, não permitem tudo. Por isso mesmo é que Santos Silva tem estado tão bem - está a fazer o gatekeeping que lhe compete na AR. Os diretores de jornais e de informação que lhe sigam o exemplo.
Noutras notícias, fiquei muito triste com o cancelamento do Chegafest. Já tinha preparado uns cartazes para me disfarçar de oposição interna, com o intuito de os distribuir na Batalha. Fica para uma outra oportunidade.
Na razão do cancelamento não está, com certeza, a coerência: quando o governo alertou para a relocalização de alguns festivais, pessoas afectas ao partido mais populista de Portugal mostraram-se contra - claro, sempre do lado dos descontentes.
Dias mais tarde, Chegafest é cancelado pela situação dos incêndios em Portugal (ok, sabemos bem que isso é uma desculpa, a verdade é que todas ou quase todas as bandas desmarcaram e, até, se demarcaram o próprio evento e associação ao partido dos intolerantes).
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