Edição #46
Antes de começar, faço novo destaque ao meu novo projecto:
Numa semana em que ultrapassámos mais dias em liberdade do que em ditadura, não deixa de ser irónico e triste o facto de brevemente contarmos com o maior número de sempre de deputados (em democracia) cuja ideologia se aproxima mais do autoritarismo do que dos valores de Abril.
Latitude 34.0928 - Hollywood
Para algo completamente diferente, afasto-me da exposição ou reflexão sobre os eventos actuais e foco-me na ficção, sendo que esta não é alheia à própria realidade - sobre isto falarei mais a propósito de Being the Ricardos.
Além da agenda mediática estar bastante explorada pelo episódio da guerra, há outra razão que me faz virar para a cerimónia dos Óscares deste ano: a qualidade dos nomeados. De resto, há muitos anos que não via uma selecção de candidatos tão boa como este ano.
Vale a pena recordar que não foi assim há tanto tempo que os insípidos Shape of the Water e Green Book (2018 e 2019, respectivamente) levaram o galardão de melhor filme. Já agora, nos dois últimos anos, a mesma distinção foi entregue ao fenómeno Parasite (2020) e ao talvez inversamente popular Nomadland (2021).
Como vou tentar abordar (todas) as categorias mais importantes, pouco espaço dedicarei à descrição ou recensão dos filmes; assim, como bom treinador de bancada, ficarei pelas básicas apreciações do “vale a pena ver”, “gostei muito”, etc. Para colmatar essa ausência, linkarei vários artigos com análises de críticos bem mais capazes do que eu.
Tal como acontece com os filmes que se decidem fazer ou as obras que se decidem mostrar ou, até, a realidade que se decide noticiar, também aqui os filmes a que dedicarei mais linhas demonstrarão uma maior afinidade, em prol de outros que poderei nem sequer mencionar. Para uniformização da coisa, escrevo o nome dos nomeados sempre em inglês.
Este ano, temos para Melhor Filme as seguintes 10 películas:
Belfast;
CODA;
Don't Look Up;
Drive My Car;
Dune;
King Richard;
Licorice Pizza;
Nightmare Alley;
The Power of the Dog;
West Side Story.
Escrever sobre os Óscares apresenta sempre vários desafios. Primeiro, escrever sobre filmes é altamente subjectivo (ainda mais do que sobre realidade, diria); depois, há uma certa responsabilidade para ver todas as películas para poder tecer uma sentença sobre qual a melhor (novamente, altamente subjectivo).
Dos 10 acima, vi nove. Tentei ver o remake de West Side Story mas não consegui aderir à promessa que o realizador de qualquer musical nos propõe: acreditar que vale a pena ouvir pessoas a dançar e a cantar aleatoriamente em troca de uma boa produção audiovisual. Não tenho dúvidas que poderá ser um bom produto (está, de resto, nomeado em várias categorias) mas não consegui comprar a ideia.
Assim, dos nove que vi, diria que vale a pena ver todos. A maior dúvida ao escrever a frase anterior recai em Nightmare Alley, mas Cate Blanchett e a última cena de Bradley Cooper justificam que se aguente a coisa. Crítica favorável aqui.
Aquele de que mais gostei foi The Power of the Dog. Com um elenco liderado por Benedict Cumberbatch (nomeado Melhor Actor Principal), o show é rapidamente roubado por uma fenomenal Kirsten Dunst (nomeada Melhor Actriz Secundária) e por um surpreendente Kodi Smit-Mcphee (nomeado Melhor Actor Secundário). Com tanta nomeação, vale a pena dizer que Jesse Plemons (não, não é o Matt Damon gordo!) também entra nas nomeações, competindo com Kodi Smit - não inédito mas pouco comum.
Este é um western sombrio de tensão crescente, que apesar de indiciar assemelhar-se, narrativamente, a Brokeback Mountain, acaba por ficar mais próximo de We Must Talk About Kevin. O argumento adaptado é muito interessante (também nomeado) e a realização de Jane Campion vale-lhe também a distinção para Melhor Realização. Para completar o leque dos galardões mais importantes, The Power of the Dog consegue também distinção entre os filmes com melhor direcção de fotografia, por Ari Wegner.
Por todas estas razões, The Power of the Dog apresenta-se como um dos principais (senão o principal) candidatos à vitória nas categorias nomeadas; o maior concorrente será Drive My Car. Com uma crítica aclamada, esta bem-longa-metragem japonesa (três horas) está nomeada também para Melhor Filme Internacional (como aconteceu com Parasite, tendo vencido as duas categorias), Melhor Guião Adaptado e Melhor Realização.
Ainda assim, não foi o filme que mais me tocou, apesar de compreender algumas das maravilhosas críticas que lhe fizeram. Ainda assim, a palavra que mais me vem à mente é desconforto (se calhar é suposto a arte ser desconfortável). Resta agora saber se é desconforto causado pela arte ou pelas três horas de leitura de legendas a que o japonês obriga. Por isso ou por nada a ver com isso, aquilo de que gostei mais do filme foi mesmo a primeira meia-hora, uma espécie de prelúdio, sendo que os créditos só aparecem depois desse momento. Pareceu-me que essa meia hora tem narrativa, fotografia e intimidade próprias, que se esfumam com o passar do tempo, tornando-se o filme mais sombrio, pesado e lento (não necessariamente pior).
Em claro contraste está Belfast; trata-se de um filme muito bem disposto, com um guião quente e inesperadamente divertido, e uma performance extraordinária do pequeno Jude Hill. A natureza verídica do filme e forma como os eventos reais são contados - aquilo que é mostrado e aquilo que é deixado de fora - dão, também, um saldo positivo ao filme; isto porque a abordagem ao conflito separatista da Irlanda do Norte não é retratada de forma extremada (apesar de invariavelmente assim ter sido), como tantas vezes vemos relatado na ficção. Ao invés, optou-se por mostrar o caso como algo que fez parte da vida das pessoas, afectando cada uma de maneira diferente, sobretudo os mais jovens.
CODA não teve grande repercussão em Portugal e nem consegui descobrir se chegou a estrear nos cinemas. Trata-se de uma produção Apple TV e tem surpreendido nas nomeações. Child of Deaf Adults (CODA) arrecadou mesmo o galardão de melhor filme nos Guild Awards, cerimónia que serve de ante-câmara dos Óscares, e onde produtores e guionistas elegem os seus favoritos.
O filme é muito interessante, emocionante e inteligente. Numa altura em que cada vez se tem mais consciência sobre a entrega de papéis a actores e actrizes que têm lugar de fala para os representar (realidade e ficção completam-se), a realizadora Sian Heder escolheu pessoas surdas para interpretar personagens com essa mesma incapacidade. Mas há mais: ao representá-las como capazes de tomar decisões e enfrentar os outros -mesmo em desvantagem sensorial - o filme assume-se também como fonte de inspiração e esperança para a comunidade surda; para este facto também contribui a visibilidade dada à vida sexual entre casais surdos (ou outras deficiências), tão comummente ocultada dos ecrãs. Retirado da Wikipedia:
Delbert Whetter, vice-presidente da organização sem fins lucrativos RespectAbility, disse: “Depois de ver tantas histórias em que pessoas com deficiência são retratadas como almas desamparadas e que precisam de ser resgatadas, é tão revigorante ver uma história com personagens surdos que são proprietários de pequenos negócios e líderes em sua comunidade pesqueira, com profundidade e nuances que rivalizam e até mesmo superam as de seus colegas ouvintes na história.”
Para terminar, o Público, não fugindo ao seu arquétipo de reduto de cinéfilos incompreendidos, atribuiu uma estrela e o autor da crítica chama-lhe “estorinha calorosa”, o que só pode significar que o filme é mesmo bom.
Sobre Dune, tenho a dizer que fiquei surpreendido pela positiva. Não por ser especialista no universo criado por Frank Herbert (desconhecia) mas pela quantidade de críticas negativas que li de fãs da ficção científica do autor e jornalista norte-americano. Eventualmente, não gostaram da abordagem mais pop e light de Denis Villeneuve, tendo em mente o olhar mais completo e complexo de David Lynch, na versão de 1984.
Nomeado para Melhor Argumento Adaptado, Melhor Fotografia e quase todas as distinções mais técnicas, o filme está mesmo muito bem feito (seria justo ter sido mencionado para Melhor Realização). Este Dune é o primeiro acto de uma história mais longa, que será contada em, pelo menos, mais um filme, cuja estreia está agendada para 2023.
King Richard colocou novamente, e finalmente, - terminando um hiato de 15 anos - Will Smith (com uma prestação fenomenal) entre os nomeados para Melhor Actor Principal. Depois da mesma distinção em Pursuit the Happiness e Ali, é ao interpretar o pai das estrelas de ténis Venus e Serena Williams que Smith regressa aos grandes papéis.
À primeira vista, não deixa de ser interessante notar que entre destacar, através da ficção (há alguns documentários), Serena ou Venus Williams, preferiu-se contar a história do pai. E é uma história que vale a pena ver e que está muito bem contada; porém, não deixa de ser interessante perceber que estrategicamente existiu uma opção, e que a mesma reflecte, uma vez mais, aquilo que se escolhe mostrar em detrimento do que fica oculto.
E este ponto é também extensível à própria personagem Richard Williams: sabendo-se que esteve longe de ser o pai perfeito, o filme embeleza um homem casmurro e intransigente, cujo método iria produzir - e produziu - duas campeãs mundiais. Continuando neste argumento, pode-se ainda alegar um claro desequilíbrio na preponderância da educação das miúdas face à mãe - personagem que no próprio filme reclama esse mesmo reconhecimento de importância. Aunjanue Ellis interpreta Oracene Williams, que com uma excelente prestação também está nomeada para Melhor Atriz, claro está, Secundária.
Licorice Pizza é um filme em que parece que não se passa nada. Tem momentos brilhantes, tal como o seu realizador (Paul Thomas Anderson, também nomeado para Melhor Realização e Melhor Argumento Original), e outros bastante banais. Parece-me, sobretudo, que a história que se quer contar não bate certo com o tempo que o filme demora. Mas vale a pena ver.
Gosto de saber pouco sobre os filmes antes de os ver e de ler muito depois. Assim, foi com espanto que vislumbrei um jovem Philip Seymour Hoffman no ecrã… não podendo ser (por estar morto), trata-se mesmo do filho. E, espante-se, bom actor! Bons actores é o que não falta, de resto, ao filme: Sean Penn e Bradley Cooper, ambos em papéis imperdíveis, a que também podemos juntar Tom Waits. Uma menção também para Alana Haim, que interpreta Alana e cuja prestação deveria ter valido nomeação para Melhor Atriz Principal. A produção está repleta de curiosidades como:
Alana's family is played by her real-life family members. She and her sisters are the members of Haim, a Grammy-nominated rock band. Paul Thomas Anderson previously directed a number of music videos for Haim, and when he was a child, his elementary art school teacher was Donna Haim, the mother of the girls. This film was partly inspired by a crush he had on her when he was her student.
Por ter estreado na Netflix há já mais tempo, poucas palavras fazem falta a Don’t Look Up. Entrando dificilmente no mesmo campeonato de outros já referidos, terá o seu lugar na história do serviço público do cinema. Com um elenco verdadeiramente de luxo (e personagens tão bem entregues), Adam Mckay conseguiu fielmente reproduzir os arquétipos que a pandemia nos trouxe. Figuras essas que, ao estarem num cenário de fim do mundo (ficção) em vez de conjuntura pandémica (realidade), permitem ao telespectador identificar-se e, ao mesmo tempo, surpreender-se, com comportamentos ridículos que grande parte da população adoptou. Por tudo isto, o filme está ainda (e bem) nomeado para Melhor Guião Original, sendo esta originalidade um pouco dúbia 😉
Quanto a melhor filme internacional, os nomeados são:
Drive My Car (Japão)
The Worst Person in the World (Noruega)
Lunana: A Yak in the Classroom (Butão)
Flee (Dinamarca)
The Hand of God (Itália)
A primeira coisa que me apraz dizer é que ter apenas cinco filmes nesta categoria sabe a pouco. É certo que este é o número de nomeados para cada categoria, à excepção de… precisamente Melhor Filme, com o dobro dos nomeados - é esquisito. Os Óscares são uma montra gigante para o cinema e se muitos destes profissionais já são consagrados, é importante mostrar mais trabalhos de realizadores de latitudes onde o cinema tem menos meios (comparado com os EUA) para se desenvolver.
Flee tem a particularidade de estar também nomeado para Melhor Filme de Animação e Melhor Documentário (tripla nomeação inédita). Isto porque aborda a história verídica de ‘Amin’ (alguns nomes foram alterados para proteger os intervenientes), que fugiu da guerra civil do Afeganistão no ocaso da União Soviética. Foi precisamente na Rússia (o único país que garantia asilo) que a família de Amin se refugiou momentanea mas indefinidamente - pode parecer contraditório, mas este é o estado de limbo em que os refugiados vivem: estão à espera de sair para um destino melhor mas não sabem quando isso acontecerá, levando por norma anos.
Se esta realidade já atrofia as condições de vida mais básicas, a coisa piora quando juntamos algumas das fortes palavras de Amin, como: “Casa: o que é que isso significa?” ou “a constante desconfiança do próximo… sabes o que isso faz a uma pessoa? Não poder confiar em ninguém, não poder criar relações, não poder dizer a verdade…” Um filme que vale muito a pena ver.
À segunda submissão por parte do Butão de Lunana: A Yak in the Classroom, a academia reconheceu a mais-valia da obra. Faz sentido abordar este filme a seguir a Flee pois, não se tratando de um documentário, há muita realidade nesta desafiante produção:
All the actors in Lunana are highlanders, many of whom had never seen the outside world. They had never seen a movie, and had never seen cameras before. It was the also the first time they were using toothpaste.
A imagem acima é a única que partilho, não graças a uma direcção de fotografia extraordinária (que não é), mas pela poderosa história. Além do importante tema da educação (e como é um direito básico da Criança), também aborda as escolhas que fazemos, como a nossa vida tem impacto na dos outros e a dureza da despedida.
Não sendo uma produção com muita visibilidade, vale a pena referir o plot: Um jovem professor no último ano de formação quer desistir do estágio e como castigo é enviado para ‘a escola mais remota do mundo’, em Lunana. Sem acessibilidade (6 dias a pé desde a vila mais próxima) e sem eletricidade, o filme também mostra como a simplicidade da vida e a ausência de capitalismo podem mostrar que há outras formas de ser feliz.
Do génio que nos trouxe The Young Pope, The Hand of God é o mais recente trabalho de Paolo Sorrentino. Este é filme autobiográfico, que aborda a juventude do próprio realizador, a partir da relação com a família, com a cidade, a Nápoles dos anos 80, e a ambição de ser cineasta. O crítico do NYT, cuja recensão intitulou A Portrait of the Cineaste as a Young Man, caracterizou bem o filme numa frase: “Paolo Sorrentino’s autobiographical drama about growing up in Naples is sensual, sad and occasionally sublime.”
Sensual (quase sexual) no sentido em que o desejo está sempre presente e os objectos de desejo são óbvios, não fosse o filme também sobre a adolescência; triste pelos eventos que marcam essa juventude e o que os mesmos aportam à definição da personalidade da pessoa; e sublime na realização a que Sorrentino já nos habitou, desde personagens complexas a brilhantes linhas de diálogo, nunca esquecendo a fotografia de autor, quer nos planos simétricos ou desafogados, quer na luz e cor das cenas.
Não vi ainda cinema suficiente para poder dizer que é uma novidade, mas tem sido um contraste conjuntural o tipo de histórias que alguns realizadores têm privilegiado. Isto é, argumentos em que não está tão marcado o clímax da história, o que condiciona (não necessariamente de forma negativa) os outros momentos narrativos. Este é o caso The Worst Person in the World ou, como penso que lhe podemos chamar, a vida como ela é. O título é provocador e a conclusão evidente: por norma, ninguém poderá reclamar para si o título do filme, independentemente das más decisões que se possam fazer.
O argumento é - e aqui faz juz o nome da categora para a qual também está nomeado - original. Original e refrescante, mas ao mesmo tempo desconfortável, taciturno e melancólio. Um filme em sintonia com os seus tempos, não tendo medo de tratar a realidade como ela é, abordando temas como a masculinidade tóxica, o arrependimento, a traição, o individualismo e a ambição, o fracasso e a frustração; ou mesmo, do ponto de vista técnico, decisões menos frequentes na realização:
Anders Danielsen Lie's full-frontal nude scene was included to show the female gaze, director Joachim Trier revealed. He said, "It was important to show because we are making a film about a young woman and her gaze. Sex scenes are often filmed from a male point of view. Not many male directors are aware of that. I think girls should be allowed to have some eye candy too."
Renate Reinsve não está nomeada para Melhor Atriz Principal e isso é uma falha. Sobre esta categoria, vale a pena abordar outro filme. The Lost Daughter contribui para mais uma nomeação à espectacular Olivia Colman. Esta é a estreia na realização para Maggie Gyllenhaal, que também está nomeada com a adaptação do argumento, a partir do livro de Elena Ferrante.
À semelhança de The Worst Person in the World, esta história também não esconde o quão egoísta as pessoas conseguem ser. Numa abordagem extremamente bem feita à maternidade, ao desejo sexual e à ambição académica, The Lost Daughter traz-nos a crua realidade da inconciliabilidade destas dimensões da vida. O filme apresenta dois momentos temporais, sendo que o passado - a jovem Leda - tem a mesma dedicação e excelência que o presente. Também por isso, Jessie Buckley está nomeada para Melhor Atriz Secundária - na minha opinião, é discutível, uma vez que ambas as actrizes são protagonistas nos seus próprios momentos temporais.
Ainda sobre distinções individuais, gostaria de sublinhar a vibrante interpretação de Kristen Stewart, em Spencer; e a mestria de Denzel Washington em The Tragedy of Macbeth, uma adaptação da obra-prima de Shakespeare, em 4:3 e escala de cinzentos, cuja fotografia vale também uma nomeação. Penélope Cruz está nomeada para Melhor Atriz Principal, em Parallel Mothers e é basicamente o único ponto verdadeiramente positivo do mais recente filme de Almodóvar.
Aqui chegados, terminamos com a biopic Being the Ricardos. Escrevi no início desta já longa edição que abordaria o tema ficção e realidade no cinema neste momento. Relendo o que escrevi, falhei redondamente. Mas o apogeu do tema, no que à ficção a imitar a realidade diz respeito, acontece com este filme. Escrito e realizado por Aaron Sorkin (de quem sou fã), esta produção da Amazon Prime não tem recolhido críticas especialmente favoráveis e as cotações de IMDb e Metascore colocam-no entre os piores dos Óscares. É curisoso. Será inconsciente?
Desconhecia a história de Lucille Ball e Desi Arnaz, que juntos protagonizaram, nos anos 50, a histórica sitcom I Love Lucy. A maior parte das críticas negativas aponta para questões técnicas do filme e isso é aceitável. No fundo, estamos a avaliar uma produção audiovisual. Mas seria ingénuo descurar o poder das histórias e esta é demasiado forte para que se foque apenas na fotografia, nas opção de rejuvenescimento digital dos protagonistas ou em contar os eventos passados com recurso a “entrevistas”, como se de um documentário se tratasse.
O mais importante em Being the Ricardos é a seguinte história: nos anos 40/50, uma mulher, mesmo depois de ter provado a sua competência em Hollywood, não contar com o apoio do estúdio quando outras actrizes mais famosas voltaram a estar disponíveis, tendo de se resignar à rádio; com o sucesso da sua radionovela, consegue uma proposta para a transmitir na televisão. Quando confrontada pelos directores da CBS para reproduzir exactamente a mesma sitcom radiofónica, esta mostrou-se intransigente: criou um formato novo, em que o seu marido assumiria o mesmo papel na série, para que ela pudesse passar mais tempo com ele, uma vez que este passava quatro a cinco noites fora de casa.
Arnaz foi um músico talentoso, de origem cubana, que encontrou nos EUA a liberdade que faltava ao regime comunista de que fugira. Essa liberdade tornou-se problemática para o casamento com Lucille Ball, uma vez que invariavelmente significava traição. As tentativas de Ball em aguentar o casamento são evidentes ao longo do filme; não se trata, também, e a julgar pela forma como Sorkin conta a história, de um caso em que o marido não amasse a esposa ou não fizesse (quase) tudo por ela. Simplesmente a mentira sobre uma traição, confrontada e negada n vezes ao longo de uma semana (espaço temporal do filme) foi demasiado para Ball.
Além do óbvio aqui descrito, e do seu paralelismo com a realidade, o facto de o filme se passar no estúdio de I Love Lucy e de ambos serem um casal tanto na realidade como na ficção - e das implicações que isto tem na performance de ambos e na relação com os outros - mostra muito bem que, mais uma vez, a ficção não é um momento à parte.
Assim, e como fui apurando com as minhas conversas com Ana Cristina Cachola, torna-se de facto preponderante as histórias que vemos na construção que fazemos da realidade. Mais histórias sobre mulheres heroínas levam-nos a perceber a força (e, olhando em retrospectiva, a obliteração) que estas têm; mais histórias sobre surdos a ter sexo (e os desafios ou não) desconstroem preconceito e normatividade; mais histórias sobre refugiados afegãos mostram que estes são iguais aos ucranianos, e que se ambos são tratados de forma diferente, isso é sintomático de que algo está mal.
E muita coisa está, de facto, mal; mas esta seleção de filmes, numa cerimónia e academia que tem muitos esqueletos no armário, dá-me bastante esperança quanto ao futuro, tanto na realidade como na ficção.