Kunduz | Moreira de Cónegos | Siracusa
Uma edição cujo tema inicial parece x e afinal, vai-se ver, é y. Leia até ao final para duas leituras muito interessantes (além dos 57 links ao longo do texto).
Sábado, 14 de agosto - Edição #14
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Latitude 36.8340 - Kunduz
Em termos práticos, pouco importa, aqui e agora, 20 anos depois, analisar as causas e forma como decorreram invasão e ocupação norte-americana no Afeganistão. Interessa olhar o presente e o futuro; e, e ainda, em rápida retrospectiva, relembrar como foi tomada (e porquê) a decisão de retirada das tropas do Afeganistão (um debate que há muito estava na agenda, e cuja decisão Biden herdou e confirmou):
President Trump managed to do something remarkable with his abrupt order last week to withdraw all American troops from Syria and half from Afghanistan: unite the left and right against a plan to extract the United States from two long, costly and increasingly futile conflicts.
Ainda no mesmo artigo, de dezembro de 2018, lê-se o seguinte:
The case for pulling out, military analysts and diplomats said, is stronger in Afghanistan than in Syria, where the United States is abandoning its Kurdish allies, leaving a vacuum that could allow the Islamic State to regroup, and ceding a strategically vital country to Iran and Russia.
Entretanto, o vazio está quase ocupado:
Kunduz, a city of 374,000, was the third provincial capital to be overtaken by Talibanin three days […]
A velocidade da ocupação por parte dos Taliban é tão rápida que deixei a análise do tema para último: passados dois dias, o excerto acima, retirado a meio da semana e que dá título à latitude, já se encontra desactualizado:
Only three major Afghan cities — the capital, Kabul, Jalalabad and Mazar-i-Sharif — remain under government control, and one is under siege by the Taliban.
O que fica de um país invadido, escancarado e, 20 anos depois, abandonado? Uma resposta, por Clara Ferreira Alves, no Expresso:
O que sobra desta confusão é um país sem rei nem roque, agreste e feroz, múltiplo e complexo, habitado por uma gente indomável, homens que nasceram e cresceram na guerra e só sabem fazer a guerra, e por mulheres oprimidas e reduzidas a poeira para os pés alados dos homens.
O que sobra é a miséria extrema de um país com três grupos étnicos que se odeiam entre si, com os maioritários pashtun a odiarem a supremacia intelectual e económica dos tajiques (a etnia do chefe assassinado pela Al Qaeda, Massoud) e a odiarem, desprezarem e reprimirem a variação islâmica dos hazara, descendentes dos mongóis e de maioria ismaelita, que são o grupo mais esquecido.
Alguns estudos indicam que liberdades, direitos e garantias no Afeganistão, sobretudo no que toca aos direitos das mulheres, progrediram com a ocupação norte-americana - improvável teria sido o contrário. Não por os EUA serem paladinos da igualdade de género, mas pelo contraste com a ideologia que volta a sufocar o Afeganistão:
After capturing Kabul in 1996, the Taliban imposed Sharia law in Afghanistan banning video films, dancing, trimming of beards by men and also forced women to dress the Taliban way and wear burqas. Harsh punishments were imposed on thieves and murderers by “religious police”.
A propósito, vale a pena ler: I worry my daughters will never know peace’: women flee the Taliban – again.
Os Estados Unidos não são paladinos da igualdade de género por acaso - nenhum país o é. Assombra a quantidade e a gravidade de histórias de indiferença e violência (até à morte) contra mulheres, mesmo nas latitudes que se consideram, porventura ingenuamente, Estados de Direito. É transversal à humanidade (homem?).
Nesta semana, duas histórias impressionantes estão nos jornais. Imagine-se as que, independentemente da gravidade, não alcançam esta visibilidade (além disso, não deveria ser necessário violência extrema para que seja noticiada ou condenada):
Raquel foi parada pela GNR e diz que acabou “espancada”. Guarda confirma a detenção mas não esclarece se houve agressões: “Não é oportuno.”
“Estava logicamente nervosa e incrédula, pedi então se podia ir fumar um cigarro à porta enquanto aguardava, obviamente [o guarda] não aprovou e, quando perguntei o porquê, disse-me: ‘vais estar caladinha, quem manda aqui sou eu, vais fazer tudo o que eu te mandar senão vais passar aqui a noite e quem vai estar aqui contigo sou eu, por isso pensa bem.’”
Portuguesa vítima de violência doméstica no Reino Unido contactou polícia sete vezes antes de morrer.
A 29 de Dezembro, a vítima ligou novamente à polícia — que a considerou “histérica” —, queixando-se de que o companheiro a tinha atingido na cara e agredido de tal forma no dia de Natal que mal podia respirar e que, no dia seguinte, este tinha empurrado a sua cabeça contra uma parede.
Latitude 41.3805 - Moreira de Cónegos
Anatomia de uma história (deprimente)
Notícia
Equipas sub-19, sub-17 e sub-15 do Moreirense não vão disputar os campeonatos nacionais na temporada 2021/2022.
Contexto
2019. Tribunal confirma condenação do Moreirense por corrupção.
2018. Moreirense suspenso de competições devido a corrupção.
Razão
De acordo com o processo, o emblema de Moreira de Cónegos terá subornado [entretanto confirmado] atletas da Naval 1º de Maio e do Santa Clara, de maneira a prejudicar as suas equipas e ajudarem o Moreirense a vencer os jogos. Os triunfos valeram então a promoção do clube da extinta Liga Orangina à Primeira Liga. [excerto de notícia de 2018]
Condenação
Equipas de formação do Moreirense - sem jogar e com descida de divisão:
Estas equipas terão de disputar os campeonatos distritais e cumprir uma caminhada (longa) para tentar voltar aos nacionais. Os sub-19 dos cónegos iam disputar a 2.ª Divisão nacional, enquanto os sub-17 e os sub-15 estavam apurados para a 1.ª Divisão.
Beneficiado
Equipa de seniores do Moreirense, cuja subida à Primeira Divisão, através do 2.º lugar na Segunda Liga da época 11/12, foi, como vimos, provada ilegal.
Como
Marosca jurídica. "Quem foi aqui condenado foi o Moreirense e não a SAD, que é quem está a disputar a liga profissional."
Já na altura, em comunicado, o Moreirense garantia que "a sua participação nos campeonatos profissionais não está em causa" e que o castigo poderá cingir-se "a competições amadoras organizadas sob a égide da Associação de Futebol de Braga e da Federação Portuguesa Futebol, no âmbito das camadas jovens".
Moral da história
Portugal, um país ao calhas.
Nota: curiosamente, o Moreirense não evitou a descida na época seguinte, ficando em 15.º na Primeira Liga 2012/13; no entanto, voltou a subir, depois de se sagrar campeão da Segunda Liga em 2013/14. Nada indica que terá recorrido a práticas ilegais. Mas uma coisa é certa: daqui a 10 anos pode ser que se saiba… e que as equipas jovens (jogadores, staff e treinadores) voltem a pagar pela corrupção dos dirigentes do futebol sénior.
Ainda no futebol:
A saída de Messi do Barça é uma boa notícia; que o tecto salarial seja copiado por outras ligas, uma vez que se prova mais eficaz do que medidas que apenas gozam de melhor marketing:
Mas seria quase impossível que Lionel Messi jogasse no Barcelona, esta época, sem receber um centavo em troca, pelo gigantesco icebergue de não saber fazer as coisas que o clube catalão hoje é. Com o argentino, os salários pagos só a futebolistas representavam 110% da faturação do Barça. Sem ele, esse rácio ficaria nos 95%, que ainda superam os 70% que as regras da La Liga exigem de todos os clubes, enquanto a UEFA e o fair-play financeiro parecem ir assobiando para o lado. Neste momento, mesmo que Messi quisesse jogar de graça, o Barcelona não o conseguiria inscrever no campeonato. Nem a Sergio Agüero, Memphis Depay, Eric García ou Emerson Royal, jogadores que contratou este verão antes de toda esta encrenca estalar, quando já sabia que eventualmente estalaria.
O segundo episódio de Rivalidade e Bom-Senso pode ser ouvido no widget abaixo, do Spotify, ou noutras app de podcasts, como a da Apple ou a da Google.
Latitude 37.0661 - Siracusa
Ainda falta a validação pela Organização Mundial de Meteorologia (OMM), mas tudo indica que o recorde europeu de temperatura máxima foi batido esta quarta-feira, pelas 13h14 locais, em Siracusa, na ilha italiana da Sicília: 48,8ºC.
Ser ou não um recorde não é a questão. A coisa é grave de qualquer maneira. A latitude para recomeçar a conversa sobre o aquecimento global poderia, infelizmente, ser outra, dada a proliferação destes episódios. O “devastador relatório da IPCC” também pode, e deve, ser usado como importante ponto de acção.
Nada de novo, tudo tendencialmente (ou muito) pior. A propósito, este cómico-trágico tweet é paradigmático da postura humana (e sobretudo do homem, há que escrevê-lo, novamente) face à progressiva destruição do Planeta:
Ainda sobre recordes:
A record-breaking heat wave that has touched temperatures of up to 46 degrees Celsius, or 115 degrees Fahrenheit, has also set off wildfires in Sweden, Finland and Norway, in yet another episode of extreme weather brought on by the man-made climate change that scientists have now concluded is irreversible.
A coisa está quente e nos jornais tem-se falado muito sobre o tema. Resta saber, como em tantas outras coisas estruturais, se permanecemos com indignação, choque e atitudes esporádicas, ou tentamos mesmo mudar.
Mas mudar não significa apenas passarmos todos a andar de bicicleta, apesar de ajudar. As mudanças têm de ser a nível macroeconómico; e por isso mesmo custam tanto: mexem com lucro de milhares de empresas.
Para perceber o que fazer é relevante entender quem contribui mais para o aquecimento global; não deixa de ser caricato que seja muito mais fácil encontrar rankings por países do que por sectores e indústrias. Percebo a questão das políticas de cada Estado, mas são as empresas e os mercados que têm de ser regulados, muito mais do que o cidadão comum (que também deve ser).
Assim, isto não significa que não possamos fazer nada. Primeiro, podemos começar - e é difícil, contra mim falo - por não consumir bens dessas empresas que mais danos causam.
Depois, com (atenção: cliché) pequenas grandes atitudes; deixo aqui alguns links:
How You Can Stop Global Warming
Things You Can Do to Reduce Global Warming
Ten Personal Solutions to Global Warming
Outras histórias
Sigo o caso de Cristina Tavares desde o início. Uma história que demonstra até onde se pode ir quando se conjuga a falta de respeito pelos trabalhadores com a sobranceria capitalista. O último desenvolvimento mostra que além do que acima escrevi, junta-se um imbróglio judicial que, naturalmente, não beneficia os mais desprotegidos. Tribunal dá razão a corticeira e nega indemnização a trabalhadora vítima de assédio:
Com esta decisão, fica sem efeito o julgamento do caso de assédio moral, em que a operária Cristina Tavares reclamava uma indemnização de 80 mil euros, que estava a decorrer no Tribunal do Trabalho da Feira.
Ai ai ai, o padrão foi pichado!!
Sabe porque é que o Padrão dos Descobrimentos foi pichado, querido/a leitor/a? Porque ainda está, no espaço público, da mesma forma - sem contextualização nem respeito por todos e todas que sofreram com a expansão marítima que o monumento celebra.
Falei sobre o stunt diplomático da Polónia na edição anterior. A solidariedade e a defesa das liberdades, direitos e garantias foram sol de pouca dura. Polish parliament passes controversial new media ownership bill:
Polish MPs have passed a controversial new media ownership law that could lead to the country’s largest remaining independent TV station losing its licence, but at the cost of several key votes that put the government’s longterm future in doubt.
Mais um bom trabalho do NYT, tanto na forma como no conteúdo. Muito mais do que uma reportagem fotográfica para o digital, uma história de empatia e liberdade.
Fourteen years ago, the mother of a gender-nonconforming son organized a “summer camp” of sorts, where her child and others like him could wear frilly pastel nightgowns and tend to their My Little Ponies together. It was called Camp I Am. In 2008, the photographer Lindsay Morris took her son there and began taking pictures of some of his fellow campers. More than a decade later, she asked many of them to be photographed again as they entered adulthood.
Para terminar, dois porquês e um como
Why public schoolboys like me and Boris Johnson aren’t fit to run our country
The most convincing reason to go to a private school remains to have gone to a private school, with the prizes that are statistically likely to follow.
I remember the feeling of desolate homesickness: abruptly, several times a year, our attachments to home and family were broken. We lost everything – parents, pets, toys, younger siblings – and we could cry if we liked but no one would help us. So that later in life, when we saw other people cry, we felt no great need to go to their aid. The sad and the weak were wrong to show their distress, and we learned to despise the children who blubbed for their mummies.
Why Olympians Are So Broke:
The Great Resignation: How employers drove workers to quit:
There are a number of reasons people are seeking a change, in what some economists have dubbed the ‘Great Resignation’. For some workers, the pandemic precipitated a shift in priorities, encouraging them to pursue a ‘dream job’, or transition to being a stay-at-home parent. But for many, many others, the decision to leave came as a result of the way their employer treated them during the pandemic.
Esta edição da Great Newsletter termina aqui; sem intenções de a tornar grande outra vez, até para a semana.