Edição #48
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Tem sido recorrente nas minhas leituras encontrar evocações a Fukuyama e à teoria de O Fim da História, sobretudo direccionadas ao contexto da guerra na Ucrânia. A tese foi publicada em artigo na National Interest, em 1989, e três anos, mais tarde em livro, com a copulativa: O Fim da História e o Último Homem; como vamos ver nesta edição, antes assim tivesse sido.
O objectivo das citações que tenho lido pretende, por um lado, mostrar que o autor americano falhou rendondamente; por outro, que a teoria continua a ser válida, pois não trata de defender o cessar de acontecimentos históricos, mas que o zénite do progresso e evolução não iriam além da democracia capitalista liberal, consolidada, assim, como baluarte do bem-estar depois da queda do Muro de Berlim.
Um excerto na página dedicada ao livro, no site da Gradiva, aponta para o maior problema (na minha leitura) na tese de Fukuyama, mesmo sem intenção; ora vejamos:
Segundo a tese brilhantemente defendida pelo autor, estas duas vertentes conduziriam, ao longo dos tempos, ao eventual colapso de ditaduras de direita e de esquerda, como temos vindo a testemunhar, impelindo as sociedades, mesmo as culturalmente distintas, para a democracia capitalista liberal, vista como o estádio final do processo histórico. A questão principal surge então: será que a liberdade e a igualdade, tanto política como económica - o estado de coisas no presumível «fim da história» -, podem criar uma sociedade estável na qual o homem se sinta finalmente satisfeito? Ou será que a condição espiritual deste «último homem», privado de saídas para materializar a sua ânsia de poder, inevitavelmente o conduzirá, a ele e ao mundo, ao regresso ao caos e ao derramamento de sangue?
O primeiro problema é, claro, tanta alusão ao homem; e nem sequer há, neste excerto, um H para se poder fugir para o conceito de Humanidade. Obviamente, essa seria a intenção, evidente na grafia do título do livro, mas não deixa de ser sintomático que ainda hoje permaneça assim. Vamos reformular: por “último Homem” entendamos, então, homens, mulheres e pessoas não-binárias, saciadas de todas as suas necessidades, com direitos, liberdades e garantias salvaguardas.
Ora não é muito difícil perceber que estamos a anos-luz desta realidade. E ainda que se queira pensar na democracia liberal (o liberal é de liberdade, não de liberalismo - importante não confundir) como zénite da governação no que ao conforto e justiça diz respeito, esta não preconiza nem materializa várias questões fundamentais, impedindo a igualdade e equidade, que hoje sabemos estar mais próximo de alcançar através de uma abordagem interseccional.
É muito fácil comprovar o progresso que ainda nos falta com o que aconteceu esta semana (e não tive de esperar por esta semana para poder escrever o texto acima - infelizmente, qualquer uma daria, tal a frequência destes casos).
"Lisboa?"; "Vive sozinha?"; "Que está a fazer?" Este terá sido um dos tipos de abordagem protagonizados por um professor auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), em mensagens de Facebook, para uma das suas alunas, a meio da noite. Outras estudantes receberam, em 2019, mensagens insistentes, via Facebook, do mesmo professor, quase sempre a horas bizarras (várias por volta das duas da manhã ou mesmo mais tarde), com tentativas de entabular conversa como "oi, como está?" seguido de emojis; "se reparar, não posso ter mais amigos no Facebook, tive de eliminar uns LOL mas não quero abusar" (dando a entender que para "pedir amizade" à estudante naquela rede tivera de abdicar de outros "amigos" virtuais); "parece ser boa aluna, qual a sua média"; "se precisar de ajuda, diga".
Além da conduta inadmissível, que infelizmente não surpreende, a gravidade do caso tornar-se maior pela forma como foi tratado internamente:
Ela [instrutora do processo] conclui que Guilherme W. d’Oliveira Martins não ponderou os “efeitos atingidos ao nível de perturbação das queixosas”, mas que o seu “grau de culpa” é “diminuto”, porque não teve qualquer “intenção de aproveitamento da sua situação institucional”. Donde, não há dolo, apenas “má compreensão da relação pedagógica” e “negligência inconsciente”. Pobre Guilherme. Não andou a importunar alunas às duas da manhã. Andou apenas a ser pateta.
Conclusão: um pedido de desculpas às seis estudantes, vá com Deus, e não volte a pecar. Ele assim fez. Prometeu “não repetir os comportamentos em causa”, pediu perdão “por eventuais interpretações ou melindres”, e depois, bye, bye, de volta às aulas, sem qualquer sanção. Que é o que agora lhe permite dizer à comunicação social: “No meu caso pessoal, nada há a apontar, uma vez que uma questão suscitada no passado foi objecto de apreciação por entidade competente e arquivada por falta de fundamento.” Falta de fundamento? A sério?
Claro que é a sério. Infelizmente, nesta democracia liberal ao calhas, os homens como Guilherme W. d’Oliveira Martins continuam a fazer o que lhes apetece e a principal razão, que eu como homem consigo identificar, é o sentimento de impunidade: Nada acontece, ninguém é culpado, não há consequências, não se perdem privilégios. Para quê mudar? Para quê abdicar da política do quero-posso-e-mando, sujeitando-se a ter de levar com ela de volta?
Se, por ventura, alguém se espantar com diagnóstico tão básico, ordinário, déspota e vil, não há grande compreensão: Como disse, o presente, o passado recente, o passado médio e o passado longínquo estão repletos de situações destas. Pessoas destratadas, minorias perpetuadas.
Continuando no nosso maravilhoso país ao calhas, veja-se mais uma (não esquecer Neto de Moura) sentença vergonhosa na cidade do Porto:
Dois juízes do Tribunal da Relação do Porto consideraram que, entre outras coisas, a falta de relações sexuais retirou gravidade a um caso de violência doméstica.
O episódio aconteceu num caso de violência doméstica em que o arguido foi detido em flagrante delito e em que a mulher contou que foi agredida durante 50 anos. “Se o crime é grave em termos legais, a ponderação dos factos retira-lhe muita dessa gravidade legal”. A frase é de dois juízes da Relação do Porto que, num acórdão assinado em fevereiro, explicam que tiveram em conta o facto do arguido num caso de violência doméstica ser alcoólico, quase surdo e doente oncológico e também a falta de relações sexuais do casal.
Neste campo, consideram os magistrados que a falta de conhecimento ou compreensão de tal “fenómeno” – palavra usada pelos dois juízes – leva a conflitos entre marido e mulher e a eventuais acusações de infidelidade.
Portanto, a questão que se impõe é: que tal está a correr este zénite do progresso para as mulheres?
E para as pessoas racializadas?
E para as pessoas emigrantes?
E para as pessoas migrantes?
E para as mulheres migrantes racializadas?
Em Fim da História, manutenção de privilégio está mal escrito.
Outras histórias
Rape as a weapon: huge scale of sexual violence inflicted in Ukraine emerges
Particularly difficult for many to comprehend is the scale of the sexual violence. As Russian troops have withdrawn from towns and suburbs around the capital in order to refocus the war effort on Ukraine’s east, women and girls have come forward to tell the police, media and human rights organisations of atrocities they have suffered at the hands of Russian soldiers. Gang-rapes, assaults taking place at gunpoint, and rapes committed in front of children are among the grim testimonies collected by investigators.
Dez Crises Humanitárias que Não Podem Ser Esquecidas
Com origem em causas de variadas ordens - motivos políticos, conflitos armados, desastres ambientais (causados pelas alterações climáticas, por exemplo) ou razões sanitárias - são muitas as batalhas e demasiadas vítimas. A invasão russa foi o gatilho que faltava para a crise alimentar se agravar em regiões como o Médio Oriente e o continente africano. O Setenta e Quatro destaca dez das mais urgentes crises humanitárias.
Afeganistão;
Burkina Faso;
Iémen;
Etiópia;
Myanmar;
Palestina;
República Democrática do Congo;
Síria;
Somália;
Sudão do Sul.
[curioso, são todos fora da Europa 🙃]
Utopian Thinking Prompts Us to Get Real About Society’s Needs
Utopias have never taken themselves to be antithetical to the analysis of social reality and its limits. The grounds for utopia are to be found in the real frustrations of social life and thereby challenge not only our social priorities but also how much suffering is truly ineliminable. Utopias enable us to enunciate previously inchoate social needs in political space and make them a matter of public concern. The achievement, or even the demand, for this standpoint becomes an issue to which politics may be forced to respond.
The tension between politics and utopia has too often been miscast as a confrontation between reality and the imagination when, in fact, they are both formative activities that take place within the real structures of social life.
“Isto é o Futuro”?
Normalizada, integrada, assumida. A presença generalizada da extrema-direita por toda a Europa faz de Orbán, juntamente com o governo da extrema-direita católica polaca, mais um caso de sucesso que de exceção. De norte a sul do continente, partidos da extrema-direita povoam os corredores do poder político e/ou as suas agendas e as suas propostas são adotadas com mais ou menos adaptações por governos que se dizem democráticos depois de encenarem a rejeição do racismo, da xenofobia e do autoritarismo.
Falkland/Malvinas: Argentina Sem apoios para reabrir a ferida
Não condenar a invasão pode ser lido como conivência com a alegada autodeterminação dos territórios de Donetsk e Luhansk defendida por Vladimir Putin. Ora, autodeterminação é a palavra a que Londres recorre para argumentar que são os kelpers, habitantes das ilhas, que querem pertencer ao Reino Unido. “Contestamos esse argumento porque a população das Malvinas não é nativa. Foi transplantada pelo Reino Unido para justificar a anexação.
A 40 anos do conflito, a Argentina também deveria ter defendido a integridade territorial da Ucrânia, mas a sua reação foi ambígua e continua confusa para o mundo”, critica Faurie, que foi embaixador em Portugal (2002-2013). Recorda que já em 2014 a então Presidente Cristina Kirchner (2007-2015) não condenou a anexação da Crimeia pela Rússia.
Não em meu nome
Aceitar jogar no Catar é, assim, conformarmo-nos diante da regressão civilizacional. E este retrocesso só se tolera à custa da operação suavizadora de imunização política do desporto. O desporto não se poderia imiscuir na política em geral e, muito menos, na política concreta, interna, seja de que país for. Quando muito, pode defender os direitos humanos, como faz quando pune o racismo que, ocasionalmente, aflora nas bancadas das arenas desportivas ou em situações de tensão acalorada entre atletas.
Não é por acaso que, perante a corajosa intervenção da presidente da Federação de Futebol da Noruega, Lisa Klaveness, no Congresso da FIFA, no dia 31 de março, denunciando a violação dos mais básicos direitos laborais dos trabalhadores migrantes no Catar, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, secundado por outros dirigentes, logo tratou de deslocar a questão desse plano para o dos direitos humanos, louvando a própria FIFA pela influência que, através de diálogo construtivo, teria sido capaz de exercer sobre as autoridades políticas do Catar para a introdução de reformas destinadas a implantar os direitos humanos. Reformas que, diga-se, segundo a Amnistia Internacional e investigação jornalística independente, poucos efeitos reais terão tido: o trabalho migrante continuará a ser, no essencial, pautado por níveis de remuneração que mal dão para viver e por modalidades de vinculação contratual semi-esclavagistas.
Eleições Francesas
Amanhã, franceses e francesas vão às urnas para escolher o próximo ou a próxima presidente. Destacados estão o actual presidente, Emmanuel Macron, a candidata da extrem-direita Marine Le Pen, e, a ganhar algum terreno nos últimos dias, Jean-Luc Mélenchon, ainda que distante dos dois primeiros.
Assim, tudo indica que os resultados vão obrigar a uma segunda volta Macron e Le Pen, o que por si só merecia um destaque maior nesta newsletter, visto a alternativa à direita ser a extrema-direita. Contudo, entre valores liberais e autoritários, não há dúvidas sobre que opção escolher. O tal destaque fica prometido para a próxima edição, aquando da segunda volta.
Para fechar
Voltei a escrever sobre história, espaço público e símbolos, no Público.
Começa assim:
Por pragmatismo sociocultural, há um consenso a que, enquanto nação, urge chegar: é impossível apagar a História. Para isso, não é despropositado relembrar que a História estuda conjuntos de acções protagonizadas por pessoas em determinado tempo e espaço. Assim, independentemente da identificação político-ideológica, temos de abandonar o argumento de que determinado grupo de pessoas pretende apagar a História de Portugal, uma vez que não se muda o passado.
Invariavelmente, esta afirmação é evocada pelas pessoas mais à direita, que entendem ser isso que a esquerda pretende – não é. Este ponto é fundamental para progredirmos no debate; caso contrário, estaremos anos e anos (como se tem verificado) a discutir as mesmas coisas sem honestidade intelectual, e, por conseguinte, sem razão.