Edição #50
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L̶a̶t̶i̶t̶u̶d̶e̶ ̶ Anos 1974 - ?
Dos feriados laicos decretados em Portugal, não haverá dúvidas de que o 25 de Abril é o mais celebrado. E não é preciso percorrer a avenida lisboeta para o festejar. Na verdade, como cidadãos e cidadãs, não precisamos de fazer muitas coisas para o celebrar: o próprio acto de não fazer nada, de não nos preocuparmos com nada é, de certa forma, viver Abril. Naturalmente, Abril é muito mais do que isso e cada pessoa atribuir-lhe-á o respectivo significado. Contudo, há mais ou menos um consenso sobre os valores de Abril e por que razão celebramos a queda do Estado Novo e a vida em democracia.
Se Abril é (mais) paz, pão, habitação, saúde e educação, então que isso se veja nos programas políticos dos partidos em que votamos. Numa altura em que as democracias liberais enfrentam uma conjuntura cujos perigos ainda estão por ultrapassar, relembrar e festejar o 25 de Abril nunca foi tão importante.
Há uns dias estava a ver o programa da RTP 3 ‘Os Filhos da Madrugada’, que recomeçou a 24 de março, para num mês de emissões diárias, coincidindo, também, com o início das comemorações dos 50 anos do 25 de abril. Um dos convidados foi o músico e escritor Kalaf Epalanga. A determinada altura, o artista angolano revelou que nunca comemorara o dia descendo a Avenida da Liberdade e que encarara “o 25 de abril com muito pragmatismo”.
É comum, por esta altura, mencionar-se, além do que já conquistámos, o que ainda é preciso fazer para concretizar Abril. Entre o que temos e o que nos falta creio estar o pragmatismo de que Epalanga falava. Se é relevante lembrar a exponencial melhoria da qualidade de vida em Portugal após a queda do regime marcelista, é imperativo lutar para que, mesmo (ou sobretudo) em democracia, se sinta e continue a sentir a transformação na vida das pessoas.
Uma das maiores dádivas do 25 de Abril é podermos escolher as nossas lutas e manifestarmo-nos por elas. Hoje, muitas ainda se assemelham com as de 1974, outras nem tanto. A boa notícia é que não há que escolher. Lutemos por direitos, liberdades e garantias que tornem a nossa sociedade mais justa e igualitária. Apostemos em políticas de equidade que protegem os mais carenciados, os que não tiveram a sorte de ter meios para competir num sistema altamente discriminatório.
A luta de Abril é a luta pragmática por melhores condições de trabalho mas também por salário igual para trabalho igual; é uma luta contra o racismo e contra a xenofobia; contra a violência de género e pelos direitos LGBTQIA+; é uma luta contra as agendas intolerantes, sejam da extrema-esquerda, da extrema-direita ou do extremo-centro. Sobre esta tríade, é importante ressalvar que não considero que o PCP seja equivalente ao Chega. A comparação é abjecta.
Na verdade, até tinha um artigo pensado, sob título “Onde está a extrema-esquerda sempre na boca da direita?” Mas há duas razões que me levaram a assim construir a frase acima. A primeira é que dizer que a extrema-esquerda tem uma agenda intolerante não é igual a dizer que em Portugal exista extrema-esquerda; a segunda é por proteção à contra-argumentação do texto: para alguns leitores o PCP poderá ser tido como extrema-esquerda (eu discordo) mas neste momento considero que mostra um carácter intolerante, preso no tempo e na ortodoxia comunista – falo, naturalmente, da posição dúbia na condenação à invasão russa da Ucrânia.
Mais ainda, com a recente manifestação de intolerância perante Zelensky, que não, não é o salvador das democracias liberais, muito longe disso. No entanto, quando se é atacado, quando se vê o povo morrer, qual é a medida certa de nacionalismo? Eventualmente, nenhum: ficar-se-ia pelo patriotismo. E como distinguimos isso em tempo de guerra? A função primária do Estado é defender o bem-estar dos seus cidadãos. O 25 de abril foi isso mesmo. Portanto, é com muita dificuldade que se podem aceitar declarações deste género:
Viver Abril é, ainda, desmistificar a tirania do mérito e compreender que diferentes situações de vida podem representar desafios acrescidos (já falei sobre interseccionalidade numa outra edição). Viver Abril é relembramo-nos do privilégio (caso se aplique) e usá-lo da melhor forma; viver Abril é questionar e desconstruir a realidade capitalista que nos é imposta como se não houvesse opção – já dizia o livrinho de Mark Fisher: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”
Sei que pareço uma cassete riscada, sempre a bater na mesma tecla. Já não deve haver muita paciência para a mensagem nem para o emissor. Quanto a isso, tenho uma boa e uma má notícia: a primeira é que este é a penúltima edição de Latitude Ocasional; a segunda é que a minha nova newsletter, mensal (valha-nos isso) será exclusivamente destinada a desmascarar o iliberalismo da extrema-direita, pelo que a cassete ainda tem muito para riscar. Ainda assim, esta urgência que sinto em escrever e partilhar factos e reflexões – cujo resultado cada vez mais me parece inconsequente – é também a minha forma de viver Abril, sempre.
Em 2020, escrevi um texto, disponível no site do Público, intitulado “Ponte Salazar ou 25 de Abril?” O motivo eram as declarações inadmissíveis de David Justino, que reiterar que certas lembranças do Estado Novo deveriam permanecer intactas, como o nome da ponte. Se fiquei chocado com afirmação do então vice do PSD, a minha perplexidade (e tristeza) aumentou ao ler os comentários na publicação do Facebook que a página do Público fizera:
Ainda hoje não consigo compreender como é que tantas pessoas podem, desavergonhadamente, optar pelo inaceitável. Dir-me-ão que comentários nas caixas de comentários não são para levar a sério. Talvez. Mas tenho para mim que nem tudo era troll, nem metade. E que há mais verdade por detrás de um teclado do que cara-a-cara – e na cabine de voto ninguém está a ver.
Um ano mais tarde, voltei a escrever sobre obras do Estado Novo, desta vez focando mesmo no Padrão dos Descobrimentos. Tentei explicar por que razão aquela edificação, pelo menos nos moldes em que se apresenta, constitui uma agressão para uma série de pessoas. Tentei afastar-me do concreto e usar outra obra qualquer, explicar que quando se ergue algo no espaço público isso ficará à vista de todos e todas – e por isso não pode ser fonte nem lembrança de sofrimento para ninguém. Eu não estudei estas questões, não estudei estatuária em espaço público nem toponímia nem coisa que o valha. Simplesmente olho e acho inadmissível. Tal como sinto o mesmo em relação aos monumentos religiosos. Eu não sou religioso e o espaço público dedicado ao mesmos não me serve. Tem de me servir? Claro! Ainda por cima num Estado laico. Qual seria a resposta? A ausência de ideologia. Consigo ultrapassar isso? Sim. Mas agora façamos o mesmo com lembranças celebratórias da guerra colonial… acho que não é muito difícil compreender. Ou é.
Uma vez mais, poucas pessoas despojaram-se de preceitos e preconceitos para ler realmente o que estava escrito e fazer o exercício que propunha. Contudo, o texto está fechado por paywall e o rácio de comentários/leituras integrais será diminuto. Esse não é o caso do meu mais recente e, arrisco, último texto sobre estes temas. Publicado há menos de um mês, também no P3, o meu artigo procurava uma abstração ainda maior, para que fosse mais fácil compreender o pensamento e não o resultado - a causa e não o caso. Porém, cometi o erro de falar em esquerda e direita e veio logo tudo, desde o extremo-centro à extrema-direita, criticar sem argumentação. Nem sequer a premissa do texto – a diferença entre história e historiografia foi assimilada.
Não era minha intenção tornar esta edição tão lamuriosa, mesmo. Mas que se lixe, isto também é o meu diário e o desalento assola-nos quando menos esperamos. Ainda assim, bem sei que não podemos baixar os braços. Os meus objectivos com os artigos que escrevo é acender algum rastilho de transformação – também a minha. Por isso é que é barómetro ler a caixa de comentários, por pouco proveitoso que pareça.
Na partilha deste último texto, lembrei-me de uma frase que tantas vezes escrevi nas aulas de Língua Portuguesa, no ensino básico: “Leitura e interpretação do texto”. De tão repetida que foi, na lição n.º 17 já não tinha qualquer significado. Acho que era papel dos e das docentes explicarem a importância de tal prática. Afinal, é através da pedagogia que a transformação é mais fértil; isto também se explica pela abertura a aprender e a ser ensinado – ser adulto não significa saber coisas. Invariavelmente, ser adulto significa ter outras responsabilidades que não nos permitem dedicar o tempo devido à aprendizagem.
Ser adulto implica trabalhar, o que implica muitas vezes não fazermos aquilo de que gostamos – e, pior, ganhar pouco com isso; depois, aos baixos salários junta-se a frustração dos altos impostos. Mal surja alguém a capitalizar este descontentamento, com ideias pouco peregrinas de que a solução é fechar fronteiras porque os estrangeiros ficam com o trabalho bom e logo temos um neofascista no parlamento. Vai daí, as pessoas que estão a tentar sobreviver com o ordenado mínimo, que têm filhos para sustentar e contas para pagar, ouvem cada vez mais este homem novo e, como não tiveram nem têm condições para ler e estudar, nem antes nem agora, vão entregar-lhe o voto, pois a coisa parece fazer sentido. Vai daí, já não é só um a dizer verdades e a prometer acabar com as regalias da classe política, que ganha mais do que o eleitorado mas que não aufere assim tanto vistas as responsabilidades do trabalho incumbido. Mas agora já não é uma mas sim 12 pessoas em fúria, cheias de performatividade para o soundbite da TV. A coisa normaliza-se, o discurso parece promissor, ir aos livros ler o que aconteceu na década de 1930 nem tanto.
Tivéssemos nós vivido Abril condignamente e a coisa não estaria assim. Nós não são os portugueses e as portuguesas, nós é todas as pessoas do mundo. Abril é transversal. Toda a gente quer conforto, melhoria de qualidade de vida e direitos, liberdades e garantias. Toda a gente merece dignidade e viver como bem lhe interessa, respeitando a liberdade do outro. Toda a gente merece uma educação robusta, merece ter direito à transformação ou ao crescimento segundo os valores liberais (os empáticos; não os ILásticos) que promovem a igualdade e equidade.
Por isso, leitura e interpretação do texto é viver Abril. É garantir que se possa compreender o que se diz, quem o diz, com que objectivo o diz. Só assim a poderosa arma que é o voto poderá servir todos e todas e não parte da população. Viver Abril é fazê-lo ao jantar com a nossa família, no café com os amigos, ou pela internet com desconhecidos. E a melhor forma é a empática, a de sensibilização. Contra mim falo, que por vezes entro sem paciência num debate que me parece demasiado primário. Eu próprio tenho de me relembrar daquilo que escrevo.
Abaixo a manutenção do status quo, viva a transformação da sociedade - Viver Abril é explicar porque razão temos de mudar. Viver abril é ter estas questões em mente todos os dias. Por mais cansativo que pareça, volto a dizer: não podemos baixar os braços, pois a intolerância e discriminação não dão tréguas. Bem sei que Abril se festeja numa data muito específica mas no nosso calendário todos os dias deveriam ser 25.
Escrito há 20 anos…
Para fechar
Está patente até quarta-feira na antiga sede do Diário de Notícias a exposição que reúne documentos do arquivo de Pacheco Pereira, Ephemera, ligados à prática censória do Estado Novo.
Mais sobre a exposição em Portugal numa redoma, ou o país que a censura não deixava ver, disponível aqui.